Na Argentina, tudo começa com um mate

Algumas coisas só fazem sentido em certas partes do mundo. Estávamos parados no meio de uma calçada, um grupo de cerca de 10 pessoas, tentando resolver um impasse. Minutos antes, íamos aos bosques para um piquenique de fim de tarde, quando alguém deu o grito. Havíamos esquecido a bombilla. Procura de um lado, discute de outro, alguém se voluntaria a voltar ao hostel e buscar uma. Quando volta, a má notícia: não havia mais bombillas disponíveis na cozinha. Todos se olham, sem saber o que fazer. “Isso não seria um problema em 99% do planeta”, pensei.

Mais tarde, resolvido o problema, eu observava um amigo despejar a água da garrafa térmica na calabaza, enquanto todos esperávamos sentados em círculo em um disputado pedaço de sombra nos bosques do Palermo. Ele foi o primeiro a esvaziar o conteúdo do pequeno recipiente de couro e metal, passando em seguida para o companheiro ao lado. Eu esperei chegar a minha vez, e, após verter mais água na calabaza, bebi um pouco do chá que se formou com o contato do líquido quente com as folhas trituradas que foram depositadas no fundo do copo.

A bebida era tomada através da tal bombilla, um canudo de metal, e tinha um gosto forte e amargo, sem chegar a ser desagradável. Aquela era a primeira vez que eu fazia parte do ritual do mate argentino, mas foi assim que eu passei muitas das tardes de verão que se seguiram em Buenos Aires, jogando conversa fora ao ar livre e dividindo a erva com os amigos (não, não essa erva).

O mate é o nome dado à infusão das folhas de uma árvore nativa da floresta subtropical da América do Sul, conhecida por – não se surpreendam – erva mate. E os argentinos são obcecados por ele. É um dos mais importantes itens da gastronomia do país, tão parte da cultura argentina quanto o doce de leite. Essa é, inclusive, uma dupla certeira no café da manhã. Rico em cafeína, vitaminas A, B1, B2, C e E e sais minerais, é a primeira opção dos argentinos para começar bem o dia, acompanhar uma rodada de estudos ou apenas passar o tempo na companhia de uma bebida. Em todas as casas argentinas, há pelo menos um jogo de utensílios para o preparo do mate. E não há situação ou hora do dia que não possa ser melhorada com um pouco da bebida.

Embora seja um costume que tem suas origens no litoral norte e região dos pampas, onde habitava o povo Guarani, a bebida se espalhou por todo o território, chegando, inclusive, aos confins gelados de Ushuaia. Foram os indígenas que ensinaram os jesuítas a consumir a erva em forma de infusão, o que levou às primeira plantações da planta e a transformou em um dos principais suprimentos alimentícios das missões cristãs que se instalaram ali. Foram eles os responsáveis por espalhar o hábito para o resto do país.

Até hoje, as principais províncias províncias produtoras da erva mate são Corrientes e Misiones, ambas na região dos Pampas e na qual predomina a cultura gaúcha, que tem no mate um de seus maiores ícones. Isso explica porque esse costume é compartilhado no sul do Brasil e no Uruguai, ainda que cada país tenha suas particularidades na hora de preparar e consumir a bebida. Há até mesmo uma rota turística que percorre as belas paisagens das plantações de mate, permitindo conhecer suas variações e também provar outros produtos feitos a partir da planta, que incluem queijos, pães, cervejas e até mesmo bombons e sorvetes.

O consumo do mate na Argentina tem suas próprias regras e protocolos. É proibido segurar a bombilla para beber, mas você pode cuspir fora o primeiro gole, se estiver amargo demais. A água deve estar quente, mas não ao ponto da fervura. No verão, pode ser consumido em sua forma gelada, que recebe o nome de tererê. Em geral, seu gosto amargo é apreciado, mas há quem acrescente açúcar à infusão, mesmo que isso seja visto como uma preparação para crianças. Também pode-se acrescentar lascas de açúcar para dar um toque cítrico ao mate.

Mas o mate é também uma bebida comunitária e tem um forte simbolismo de amizade. Quando compartilhado, cada pessoa deve beber todo o conteúdo antes de passar a vez. É possível passar horas conversando com amigos em uma rodada de mate. Na Argentina, onde tem um grupo de pessoas, tem mate passando de mão em mão. E nunca, absolutamente nunca, se nega mate a alguém. Assim como o ato de compartir simboliza a amizade, negá-lo é uma ofensa, um ato de extrema hostilidade. Há mesmo coisas que só fazem sentido em algumas partes do mundo.

Foto: Shutterstock

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones e no Youtube. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

Ver Comentários

  • Todas essas "regras" também são observadas no Rio Grande do Sul. A única diferença que eu notei foi a forma de preparo que aqui se faz "montinho" e na Argentina não. De qualquer maneira chimarrão é muito bom!

  • Heeey Natália,

    E foi quase na última frase que você mencionou o que mais chamou minha atenção neste ritual. hehehe

    "...E nunca, absolutamente nunca, se nega mate a alguém..."

    Na última vez que fui a Buenos Aires me surpreendi com isso. Em duas ocasiões, com dois amigos diferentes que estavam sem seu kit de mate, ambos foram pedir um pouco da bebida a desconhecidos. E mais surpreendente do que ver eles fazendo este pedido a um "estranho", foi ver como as outras pessoas ficavam contentes em compartilhar o mate.

    Adorei o texto!

    Abraço.

    • Murilo, é algo muito incrível mesmo, essa cultura de compartilhar o mate mesmo que seja com alguém que você não conhece. Foi também o que mais me chamou a atenção.

      Abraços!

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Natália Becattini

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