As narrativas de viagem Nisia Floresta, uma escritora esquecida

Talvez você não saiba, mas existe no Brasil um município chamado Nísia Floresta, no Rio Grande do Norte. No início do século 19, a cidade chamava-se Papari e lá, no sítio Floresta, nasceu Dionísia Gonçalves Pinto. A menina que um dia daria o nome à sua cidade natal foi uma viajante revolucionária que publicou quinze livros, tanto no Brasil quanto na Europa. Ela teve amigos ilustres, lutou pelos direitos femininos e advogou pela abolição da escravatura.

A história de como Dionísia tornou-se Nísia Floresta, ou ainda Augusta Brasileira, um dos pseudônimos que usava para assinar seus textos, foi um processo que envolveu diversas revoluções, lutas feministas e muitas viagens. Infelizmente, apesar da brilhante carreira, foi esquecida pela história da literatura brasileira por muitos anos.

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Para resgatar essa história, buscamos notícias de jornais da época, na hemeroteca da Biblioteca Nacional, lemos artigos e teses sobre a escritora (indicados no final deste texto), além dos próprios livros e textos de Nísia Floresta. E também entrevistamos uma das principais estudiosas sobre Nísia, a professora Constância Lima Duarte, que percorreu o Brasil e a Europa em busca da memória da escritora. Ela escreveu vários livros sobre a Brasileira Augusta, inclusive a biografia #Nísia Floresta Presente, publicada no final de 2019.

Museu de Nísia Floresta, no Rio Grande do Norte, inaugurado em 2012. Crédito: Kyller Costa Gorgônio, (CC BY-NC-SA 2.0)

Segundo a professora, as circunstâncias não são conhecidas, mas fato é que o pai e a mãe de Nísia, membros da chamada “elite esclarecida” no Nordeste Brasileiro, permitiram à filha uma educação pouco usual na época – ela não só sabia ler e escrever bem, em mais de um idioma, como estava conectada com as discussões intelectuais de vanguarda. O sociólogo Gilberto Freyre aponta que Nísia era muito diferente das mulheres de sua época, pois mesmo as da elite eram analfabetas.

“No meio dos homens a dominarem sozinhos todas as atividades extra-domésticas, as próprias baronesas e viscondesas mal sabendo escrever, as senhoras mais finas soletrando apenas livros devotos e novelas […], causa pasmo ver uma figura de Nísia.”

Gilberto Freyre, no livro Vida social no Brasil nos meados do século XIX

 

Ao longo de sua vida, ela viveu de perto as revoluções contrárias à dominação portuguesa no Brasil: a Revolução Pernambucana (entre 1817 e 1824) e a Revolução Farroupilha (de 1835 a 1838) – ela, inclusive, ficou amiga de Giuseppe Garibaldi. Acompanhou também revoluções europeias, como a Reunificação Italiana, sob o comando de Garibaldi, e a Revolução Grega, que acabou com a monarquia no país.

Escreveu sobre essas experiências em livros e artigos de jornais, e tais revoluções afetaram a forma como questionava o mundo. Logo, também escreveu textos sobre direitos e liberdades dos índios e a favor da abolição da escravidão.

A foto de Nísia foi cedida pelo Museu Nísia Floresta

No Brasil, morou no Rio Grande do Norte, em Pernambuco, no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. Na Europa, circulou e viveu em diversos países: França, Portugal, Itália, Inglaterra e Alemanha, para citar alguns. Apesar de ter passado as últimas décadas de vida no Velho Continente, ela mantinha um olhar saudoso sobre o Brasil, principalmente da sua infância feliz no sítio Floresta.

Aos 14 anos, Dionísia foi obrigada a se casar com um grande senhor de terras. Mas, um ano depois, abandonou o casamento e voltou a viver com os pais. Se casou de novo no final da década de 1820, aí sim por amor, com um estudante de direito, Manuel Augusto de Faria Rocha, com quem teve dois filhos, Lívia e Augusto. O marido morreu poucos anos depois.

Seus primeiros textos foram publicados em um jornal nos anos 1830. Nessa época, Nísia fez a tradução do livro de Mary Wollstonecraft, publicando “Os Direitos das mulheres e injustiça dos homens”, em denúncia ao mito da superioridade masculina. Foi o primeiro de muitos livros sobre a educação e condição feminina. Também lançou, entre outros: Conselhos à minha filha (1842) e Opúsculo Humanitário (1853), em português. E Cintilações de uma Alma Brasileira (1859) e A Mulher (1859), em italiano e inglês.

Desde as primeiras publicações, passou a assinar com seu apelido, Nísia, e nunca chegou a utilizar seu sobrenome oficial. Segundo o livro de Paulo Margutti, “Nísia Floresta, uma brasileira desconhecida“, ela usava Floresta, como sobrenome em homenagem ao local de nascimento. Brasileira, em homenagem à pátria. E Augusta, uma menção ao marido.

Duarte nos conta que ela brincava com os nomes em suas publicações, utilizando desde o nome completo até variações como “Madame Brasileira”, “Madame Brasiliene”, “Floresta Augusta”, “NFBA” ou apenas “B.A.”. Perguntei à pesquisadora o porquê do uso do pseudônimo. Segundo ela, era uma forma das mulheres protegerem à família e a si mesmas da publicidade que uma publicação provoca:

“E o mais interessante é que o pseudônimo virou o nome. No túmulo dela em Rouen, no interior da França, não está Dionísia Gonçalves Pinto. Quem está enterrada ali é Nisia Floresta Brasileira Augusta. Foi um pseudônimo absolutamente incorporado, que vira seu novo nome. Ela se rebatiza.”, conta Constância Lima Duarte

 

Nísia Floresta já trabalhava como professora desde os tempos em que viveu em Olinda e em Porto Alegre. Mas foi na capital do Império, o Rio de Janeiro, que fundou o Colégio Augusto, em 1838, focado no ensino para meninas. Constância Lima Duarte explica que o ensino para mulheres só havia sido permitido pelo governo dez anos antes, e que Floresta foi uma das pioneiras no Brasil, competindo com colégios fundados por estrangeiras.

O Colégio Augusto tinha como grande diferencial a proposta de que as mulheres deveriam estudar temas mais profundos e ir além dos ensinamentos puramente domésticos. Logo, ensinava matérias que eram reservadas aos homens, como latim e geometria. Apesar de ter recebido elogios, as críticas também era duras, afinal, não era bem visto que mulheres tivessem um conhecimento avançado.

Do Brasil para Europa

A primeira viagem de Nísia e sua filha Lívia à Europa foi em 1849, por motivos de saúde. Segundo o artigo “Nísia Floresta: feminista quando nem se falava sobre isso no Brasil”, não era permitido que mulheres brasileiras naquela época viajassem apenas pelo prazer da viagem. Assim, Nísia justifica seus motivos para a partida: uma recomendação médica por uma “mudança de ares”

Nos sete anos seguintes, ela se divide entre a vida no Rio de Janeiro e as viagens pelo Velho Continente. A professora Constância afirma que ela circulava muito pela Europa, sendo possível encontrar em jornais da França, da Inglaterra, de Portugal e da Alemanha referências às suas estadias e elogios às suas publicações.

Em agosto de 1855, a mãe de Nísia morre (seu pai e marido coincidentemente também morreram nos meses de agosto). É quando ela decide fechar o Colégio Augusto, após 18 anos de funcionamento, e embarcar de vez para Europa. Na tese de doutorado de Sônia Marinho Lúcio, “Uma viajante brasileira na Itália do Risorgimento”, a pesquisadora afirma que não só a dor da perda, mas a condição feminina no Brasil também a levou a tomar essa decisão. Na Europa, Nísia tinha acesso a círculos intelectuais refinados e à educação, coisas que eram negadas no nosso país.

Marinho Lúcio também explica que ela adota a França como sua “pátria de espírito”. Segundo a autora, no texto “Páginas de uma vida obscura”, publicado no jornal O Brasil Ilustrado, em 1855, ela faz tal afirmação. Ainda, no livro sobre sua viagem à Alemanha, ela escreve numa carta: “Ouvindo falar alemão, fui tomada, um instante, pela emoção de me encontrar em um solo completamente estrangeiro, pois, na Bélgica, exceto as pessoas de classes baixas que falam flamengo entre si, todo mundo expressava-se em francês, de maneira que eu me sentira até aqui ainda como na França, que considero uma segunda pátria”.

O motivo disso, segundo a professora Constância, é que na França ela chega ao ápice da vida social: “Ela se deu bem lá, se identificou, foi prestigiada, teve um salão. Salão era um espaço nobre de reunião dos intelectuais da época. Todo intelectual tinha o seu salão. E uma vez por mês as pessoas se reuniam, convidavam poetas, declamavam poesias, divulgavam seus trabalhos. Ela teve seu salão, na rue Royer Collard, perto dos jardim de Luxemburgo.”

Quadro “Salon de Madame Geoffrin”, Anicet Charles Gabriel Lemonnier

Em Paris, Nísia conviveu com grandes pensadores e artistas, como George Sand, Alexandre Herculano, Alexandre Dumas (pai), Lamartine, Duvernoy e Victor Hugo. Ela se tornou amiga de Augusto Comte, filósofo idealizador da doutrina do positivismo, com quem trocou diversas cartas.

Saiba mais: George Sand, a escritora francesa que ousava usar calças

A Narrativas de Viagem de Nísia Floresta

As narrativas de viagem eram a grande moda da literatura do século 19 entre os escritores europeus. “Livros de viagem eram uma novidade naquele momento, então Nísia incorpora e adota o estilo”, explica Duarte.

Enquanto pouquíssimos brasileiros adotaram esse gênero literário, Nísia Floresta escreveu seus comentários e impressões de uma brasileira no Velho Continente. Ela publicou livros e artigos de jornal, com sucesso, em francês, italiano e inglês.

O primeiro livro resultante dessas jornadas foi Itinerário de uma viagem à Alemanha, onde ela reúne 34 cartas enviadas para a família, e fala as suas impressões pessoais, como o que viu nas cidades, descrições de monumentos e de praças. Segundo Constância, esse é um livro mais melancólico, de uma viagem feita um ano após o aniversário da morte da mãe. Nele, Nísia escreve: “Viajar, repito-lhes, é o meio mais seguro de aliviar o peso de uma grande dor que nos mina lentamente”.

Entre 1858 e 1861, ela parte para três anos e meio de viagem pela Itália, que rendem dois volumes de um mesmo livro: Três anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia. “O sonho de qualquer poeta”, como o ilustre Machado de Assis escreve numa crônica do jornal Diário do Rio de Janeiro em 1864, ao descrever o livro publicado pela Brasileira Augusta.

Capa do segundo volume de Três Anos na Itália, traduzido para o português publicado em 2018

Nísia e Lívia continuaram vivendo na Europa pelo resto da vida, com algumas visitas ao Brasil e textos publicados em outras línguas sobre o país. A filha da escritora se casou com um alemão, mas ficou viúva em 4 meses, e não chegou a ter filhos.

Floresta só parou de viajar nos últimos 10 anos da vida, quando se fixou em Rouen, na França. Foi nessa região que ela morreu e é onde encontra-se seu túmulo. Em 1948, Papari foi renomeada em homenagem à sua mais ilustre cidadã.

Apesar de toda sua obra, a autora foi por muitos e muitos anos esquecida e seus textos e livros publicados na Europa só foram traduzidos para o português um século depois. As obras de Nísia Floresta foram por muitos anos ignoradas pelas editoras e desconhecidas do público.

“Toda a sua obra foi relegada, deixada de lado. A autoria feminina foi relegada ao abandono, ao esquecimento. Costumo dizer que foi vítima do memoricídio. A morte da memória. A escritora até tem um prestígio em vida, mas quando ela morre sua obra parece que vai junto. Havia um corporativismo masculino que simplesmente ignorou a literatura das mulheres e a história das mulheres como um todo”, explica Constância Lima Duarte.

Fontes de Pesquisa:
  • Uma viajante brasileira na Itália do Risorgimento, tese de Doutorado defendida na UNICAMP em 1999, por Sônia Valério Marinho Lúcio
  • Três Anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia (Volume 2), Nísia Floresta. Tradução de Maria Selma C. L. Pereira
  • Narrativas de viagem de Nísia Floresta, Constância Lima Duarte, 1999
  • Nísia Floresta: Itinerário de uma viagem à Alemanha, Márcio de Lima Dantas, 2012
  • Nísia Floresta: feminista quando nem se falava sobre isso no Brasil, Leonam Lucas Nogueira Cunha e David de Medeiros Leite, 2018
  • Nísia Floresta,uma brasileira desconhecida, Paulo Margutti, 2019

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Luiza Antunes

Luiza Antunes é jornalista e escritora de viagens. É autora de mais de 800 artigos e reportagens sobre Viagem e Turismo. Estudou sobre Turismo Sustentável num Mestrado em Inovação Social em Portugal Atualmente mora na Inglaterra, quando não está viajando. Já teve casa nos Estados Unidos, Índia, Portugal e Alemanha, e já visitou mais de 50 países pelo mundo afora. Siga minhas viagens em @afluiza no Instagram.

Ver Comentários

  • Sou educadora e admiradora ferrenha das grandes mulheres que o Brasil e do exterior que foram esquecidas. Nisia Floresta, D. Beja, Cora Coralina, Irmã Dulce, Evita Peron, Princesa Isabel, `Princesa Diana, Angelina Jolie, A Dama de Ferro, etc, Jamais poderiam ser esquecidas. E, com certeza fora do Brasil inúmeras. EU GOSTARIA MUITO DE SABER ONDE ENCONTRO AS BIOGRAFIAS DAS SRAS NÍSIA FLORESTA, PRINCESA DIANA E UMA MEXICANA QUE NÃO ESTOU LEMBRANDO O NOME AGORA. M LEMBREI. FRIDA KAHLO. Moro em Campinas SP, Brasil e meu e-mail é ucipires@yahoo.com.br

  • Antes de conhecer a história de vida de Nizia , acreditava que se tratava apenas de uma sociality da época, que nomeou a cidade por ter deixado obras sociais relevantes; jamais imaginaria que, nessa época, em qualquer lugar do Brasil, e mesmo nas capitais, uma mulher tivesse acesso à esse nivel de estudos , até porque obrigou-se à casar com 14 anos e assim, ja se encerraria qualquer possibilidade de não ser mais que uma boa anfitriã e uma mulher prendada. Só !!! Uma judiação ocultar sua história de sucesso da literatura !

    • Oi Bene,

      Realmente, o que fizeram com ela foi apagar sua relevância para a literatura brasileira, simplesmente por ser mulher

  • Muito interessante, meu genro é de Nisia Floresta e já havia falado que a Cidade se chamava Papari, e foi renomeada em homenagem a essa mulher. Impressionante o fato dos pais terem dado uma instrução desse nível para ela. Parabéns é uma matéria muito interessante , moramos num país que não tem memória infelizmente.

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Luiza Antunes

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