Pandemias e epidemias: 10 doenças que mudaram o mundo
“Há algumas semanas era impensável que o mundo estagnasse, seria uma ideia catastrófica a todos os níveis. No entanto, aconteceu”, diz a arqueóloga portuguesa Joana Freitas quando perguntada se a atual pandemia representa um ponto de virada na história da humanidade.
Grandes surtos de doenças sempre representaram um momento de mudanças e ruptura com a ordem vigente, comparadas até mesmo com o impacto causado pelas guerras: “A pandemia de Covid-19 não será exceção. É um momento de reflexão forçada, numa paragem global que não estava programada. São estes momentos que levam a humanidade a pensar nas suas problemáticas, uma vez que estas situações são incubadoras de dúvidas”, afirma.
Entre as possíveis mudanças vislumbradas por ela, uma nova relação com o trabalho, o enfrentamento mais incisivo das questões climáticas e uma nova distribuição de investimentos no setor da saúde: “Nem sempre o inimigo dispara uma arma. Vivemos, acima de tudo, uma experiência social alargada. É tempo de refletir o que permitimos fazer, o que fazemos e como decidimos responder a uma crise como esta”.
“O surto de covid-19 que vivemos não é algo novo na humanidade, faz antes parte dos nossos ciclos. Contudo, mesmo com toda a tecnologia disponível, compreendemos que podemos falhar, que não conseguimos salvar todos ou travar a epidemia com a eficácia com que gostaríamos”, conclui.
Veja agora algumas das principais epidemias e pandemias da história e como elas afetaram as relações políticas e sociais, o avanço da ciência e até mesmo a cultura de um local.
Os antigos conheciam muito menos do mundo que nós conhecemos hoje, e sua capacidade de locomoção na superfície terrestre era limitada. Por isso, não era lá muito possível para um agente microscópio rodar o globo da forma como ele faz hoje. Nessa época, surtos de doenças tinham potencial de alastramento geográfico muito mais restrito, mas ainda assim eram capazes de dizimar cidades ou regiões inteiras e mudar os rumos da história de uma nação.
Foi o que aconteceu no surto da Peste do Egito, uma praga que permaneceu, por milênios, um mistério, mas que chegou a matar um quarto das tropas atenienses durante a Guerra do Peloponeso, em 430 a.C. O conflito contra Esparta teve como principal motivação a disputa pelo poder na região: Atenas crescia em importância e isso despertava o temor nos espartanos.
O revés da doença debilitou seriamente as tropas atenienses logo no início da guerra, que durou de 431 a.C a 404 a.C., e acabou também reduzindo o poder de Atenas. A guerra foi um marco para a ascensão de Esparta. Só em 2006 que os pesquisadores da Universidade de Atenas descobriram que a peste na verdade se tratava de Febre Tifoide.
Outras doenças bastante conhecidas hoje assolaram terrivelmente o mundo antigo. A Peste Antonina, que possivelmente se tratava de varíola, matou 5 milhões de pessoas entre 165 d.C e 180 d.C. Já a Peste de Cipriano, não se sabe se motivada por varíola ou sarampo, se alastrou por todo o Império Romano entre 250 e 271 d.C e chegou a matar 5 mil pessoas por dia em Roma.
Ainda mais mortal foi a Peste de Justiniano, o primeiro surto registrado de Peste Bubônica (ou Peste Negra) que começou no Egito em 541 d.C e se alastrou até Constantinopla, atual Istambul. Por ali, chegou a matar 10.000 pessoas por dia, 40% dos habitantes da cidade e até um terço de toda a população do Oriente Médio.
O primeiro surto de Peste Negra causou mudanças profundas na organização social e política da Antiguidade: “O Império Romano nunca mais será unificado, é o início da época medieval”, conta Joana de Freitas.
Aquele não foi o único surto de Peste Negra na História. A doença, transmitida por pulgas e ratos, voltaria a assolar a Ásia e a Europa em várias ocasiões entre os séculos 14 e 17. Considerada uma das piores epidemias já enfrentadas pela humanidade, cada onda da Peste Negra – que podia ocorrer geração atrás de geração, uma vez que as pessoas que nasciam após a última não haviam adquirido imunidade – deixava milhares de mortos e cidades desoladas.
Máscara utilizada por médicos em Veneza, uma proteção contra a Peste Negra
Leia também: Como Veneza sobreviveu à Peste Negra, a pior epidemia de todos os tempos
Estima-se que algo entre 75 e 200 milhões de pessoas morreram na Europa na primeira fase da epidemia na época medieval, que ocorreu de 1347 a 1351. As limitações médicas e científicas da época não permitiam identificar a causa da doença e a Idade Média era marcada por um pensamento profundamente obscurantista e religioso, de modo que a peste era associada a um castigo divino.
Também era comum a busca por bodes expiatórios, em especial entre povos de fora da Europa – a busca por um inimigo estrangeiro parece ser uma constante na história da humanidade, não é mesmo?
Embora a propagação da doença esteja, sim, relacionada a caravanas e ao deslocamento dentro da própria Europa e entre o continente e a Ásia, foram os judeus que viviam ali os que foram responsabilizados, perseguidos e mortos em nome da Peste Negra.
Fato é que a doença provocou uma mudança profunda na cultura medieval e nas relações sociais e econômicas da época. Essas mudanças acabaram sendo um dos gatilhos na transição desse período histórico para a Idade Moderna e o surgimento de movimentos como o Renascimento e o Iluminismo. Hábitos de higiene pessoal e de limpeza das cidades também foram adotados com mais rigor para evitar novos surtos.
Com as estruturas de produção feudais em pleno declínio por causa das mortes e do pânico generalizado pela epidemia, as condições de trabalho dos camponeses pioraram cada vez mais. Isso causou uma série de revoltas que acabaram por, junto com a pressão da burguesia, enterrar de vez esse modo produtivo.
Embora a Peste Negra seja considerada por alguns historiadores como a primeira pandemia, foi em só em 1580 que uma doença conseguiu de fato se espalhar pelos quatro cantos do mundo. Com as grandes navegações, as novas rotas marítimas ligando a Europa à Ásia e a conquista da América, o mundo deu seu primeiro passo rumo à globalização – e também aos surtos capazes de contaminar grandes parcelas das populações em todos os continentes.
E a primeira pandemia da história foi de uma doença muitas vezes negligenciada, mas que segue matando milhares de pessoas todos os anos: ela mesma, a influenza, ou gripe comum. Em apenas seis meses, ela saiu da Ásia, se espalhou pela Europa e pela África e acabou chegando à América do Norte, matando em torno de 10% da população em áreas afetadas pela doença.
A invasão europeia nas Américas levou outras doenças para os territórios inexplorados, fazendo com que muitos indígenas sucumbissem por pragas provocadas por micro-organismos que nunca tinham entrado em contato antes, o que, sem dúvidas, ajudou a enfraquecer os povos nativos e facilitar a colonização.
A varíola também foi uma dessas doenças. Sua destruição foi tão massiva que é possível compará-la a uma arma biológica: em poucas gerações e em surtos distintos, chegou a dizimar povos inteiros. Junto com a gripe, o sarampo e a própria matança comandada pelos Europeus, estima-se que a população nativa da América chegou a cair em 95% no espaço de tempo de algumas gerações.
A Idade Média tinha ficado para trás. A Europa já vivia sua época de ouro do renascimento cultural e do pensamento iluminista, mas as doenças não respeitam limites históricos. Durante os séculos 17 e 18, diversas pragas assolaram as principais cidades do continente, criando um cenário de destruição muito parecido ao vivido séculos antes.
Foi no século 17 que a Peste Negra causou suas últimas grandes epidemias por aquelas bandas. Primeiro, na Itália, em 1629 e, mais tarde, em Londres, em 1665. Um ano depois de ter perdido um quarto de sua população para a peste, a cidade inglesa sofreu outra tragédia: o grande incêndio de Londres destruiu boa parte da cidade. Ironicamente, foi o fogo que ajudou a acabar com a epidemia, ao destruir os bairros mais precários.
Na reconstrução, um planejamento urbano mais moderno e eficiente ajudou a manter a praga longe. Foi então que a cidade passou a ter ruas mais largas, calçadas, esgoto subterrâneo e a substituição das construções de madeira por tijolo e pedra.
A primeira grande epidemia reconhecida de cólera começou na cidade de Jessore, na Índia, no ano de 1817, e em um curto espaço de tempo se espalhou por boa parte do país, cruzou fronteiras e chegou ao Myanmar e ao Reino do Ceilão (Sri Lanka), Tailândia, Indonésia e Filipinas.
Embora já houvesse alguns relatos de uma doença semelhante na região desde a antiguidade, pouco se sabia sobre ela antes, e foi apenas nessa ocasião que ela ganhou importância global. Em 1821, a epidemia já havia conquistado o Iraque, matando 18 mil pessoas em apenas três semanas; e também Turquia, Arábia e África oriental.
No surto seguinte, iniciado em 1829, o cólera chegou pela primeira vez à Europa e às Américas. Outras cinco epidemias se seguiram a essa. A última, iniciada em 1961, ainda não acabou. A doença infecta entre 1.3 e 4 milhões de pessoas todos os anos e mata entre 21 mil e 143 mil, a maioria de regiões mais empobrecidas do globo.
Contraída através da ingestão de água e alimentos contaminados, a doença – pouquíssimo lembrada em países ou regiões ricas – ataca principalmente a parcela da população mundial que, em pleno século 21, ainda não tem saneamento básico e água tratada, expondo a imensa desigualdade social existente no mundo.
Embora tenha acompanhado a humanidade há pelo menos 4 mil anos, a tuberculose marcou para sempre a história do século 19. Associada ao Romantismo – movimento artístico, político e filosófico contrário ao iluminismo e que valorizava o drama humano, amores trágicos, ideais utópicos e o escapismo – a doença acometeu, sim, vários artistas e pensadores, mas estava muito mais ligada às condições precárias de vida entre as camadas mais pobres da população.
Fato é que que ela acabou adquirindo uma aura de doença intelectual e dos idealistas, que a relacionavam aos que buscavam uma vida mais livre ou questionavam os padrões morais da época. Graças a isso, as artes e a literatura mundial foram profundamente influenciadas pela presença funesta da tuberculose naquele período. Em romances e poemas, a doença era retratada como uma expressão física dos sentimentos, o mal que representava a paixão.
“… Em países europeus, a imagem de um ‘tuberculoso’ estava associada à ideia de sensibilidade às artes, ao amor, ao refinamento dos sentimentos e passou a ser, no século XIX, uma forma valorizada de estética. Ser como ou ser um ‘tuberculoso’ era visto, por alguns grupos, como um símbolo de distinção, o que influenciou por muito tempo os padrões sociais europeus de vestir-se, de viver, de comer e de afirmar-se na sociedade. Porém, ao final do século XIX, na Europa, houve a reconstrução da imagem da tuberculose; a concepção romântica deu lugar à compreensão social da doença, com sua maior incidência nas classes trabalhadoras.” (GONÇALVES, 2000)
Entre suas vítimas mais célebres estão Castro Alves e Álvares de Azevedo, no Brasil, e John Keats e Lord Byron, na Europa.
A história já viveu inúmeras epidemias de gripe, algumas mais mortais que outras. Nenhuma delas, no entanto, foi tão letal quanto a Gripe Espanhola. Estima-se que algo entre 20 e 100 milhões de pessoas morreram da doença (entre 3% e 5% da população mundial), que infectou cerca de 500 milhões, uma em cada três pessoas na época.
Embora tenha recebido nome espanhol, não se sabe ao certo onde o surto começou. Alguns historiadores afirmam que foi nos quartéis do Kansas, nos Estados Unidos. Outros, que o paciente zero estava em acampamentos militares da França ou Inglaterra. O que se sabe é que, no meio de uma guerra mundial, o mundo tinha pouquíssimo preparo ou protocolos para lidar com uma epidemia daquela magnitude.
O conflito também foi responsável por ter abafado as notícias e o número de vítimas da gripe, que só ganhou o mundo quando chegou à Espanha, país que se manteve neutro durante a Primeira Guerra e que, portanto, pode dar mais atenção à doença.
Durante a pandemia de Gripe Espanhola, o colapso do sistema de saúde foi uma das causas da grande quantidade de óbitos
A Gripe Espanhola causou uma destruição em escala global jamais vivida pela humanidade. Foi a partir dela que os cientistas começaram a entender melhor a propagação da gripe e quais as medidas necessárias para enfrentar uma epidemia. Esse conhecimento levou a um grande avanço nas políticas de saúde pública. Como exemplo, aquela foi a primeira vez que a notificação de casos de uma doença se tornou obrigatória, bem como a desinfecção de ruas e espaços públicos e o monitoramento de escolas, igrejas e quartéis.
Os lugares que adotaram o isolamento social mais precocemente foram os que menos sofreram os impactos da gripe. E esses impactos não se restringem ao número de mortos, mas também a uma recuperação econômica mais rápida.
A história nos deixa inúmeras lições às quais podemos recorrer para lidar com o novo coronavírus. Nós falamos de algumas delas aqui.
A malária acompanha a humanidade há milênios. No Império Romano era conhecida como Febre Romana e também é considerada um dos fatores que contribuíram para o seu declínio.
Hoje uma doença evitável, detectável e tratável, em uma escala regional, a malária ainda é a responsável por centenas de milhares de mortes e infecções todos os anos. Além disso, tem fortes impactos socioeconômicos nas regiões em que é endêmica, pois representa uma grande carga para a receita desses países e sobrecarrega os serviços de saúde locais.
“Muitas vezes associamos a malária à pobreza, mas há o reverso: a malária também é a causadora da pobreza nas regiões onde é endêmica. Forma-se, portanto, uma bola de neve que só tem tendência a piorar”, conta a arqueóloga Joana Freitas. “A malária representa um entrave bastante significativo no desenvolvimento social e econômico destas regiões, por outro lado a falta de recursos financeiros para prevenir e tratar aumentam o risco de a contrair”, completa.
Considerada uma pandemia global ainda em andamento, a AIDS (Síndrome da imunodeficiência adquirida) – doença provocada pelo vírus HIV – foi identificada e diagnosticada pela primeira vez no início dos anos 1980, depois que cinco casos de pneumocistose, uma doença extremamente rara, foram reportados em Los Angeles.
Assim como aconteceu com o primeiro surto de sífilis, no século 16, a evidência de uma nova doença sexualmente transmissível foi recebida com muita desconfiança e preconceito pela sociedade, que a associavam a diversos julgamentos morais e levavam à estigmatização dos infectados: “A comunidade homossexual foi a primeira a ser atingida por conta do desconhecimento e assim continuou por muito tempo, mesmo depois de já existirem registros de casos em pacientes heterossexuais”, explica Joana de Freitas.
No início, a ausência de tratamentos efetivos no controle do vírus fazia com que a doença alcançasse uma alta taxa de mortalidade. Hoje, graças ao desenvolvimento de drogas cada vez mais eficazes e a uma ampla disseminação de informações, grande parte dos portadores do HIV vive vidas longas e produtivas.
A doença teve um profundo impacto social, que perdura até hoje. Segundo a pesquisadora, foi a partir dela que se entendeu a necessidade de incluir educação sexual nos currículos escolares, bem como a criação de campanhas governamentais que incentivassem o sexo seguro, ainda que esses avanços não tenham acontecido de forma igualitária em todo o globo: “Obviamente, o tipo de impacto muda conforme a região do globo, os níveis econômicos e de literacia são determinantes para a compreensão dos aspetos a serem alterados”.
Estima-se que 35 milhões de pessoas já morreram por causa do HIV dos anos 1980 até hoje. O continente mais atingido é a Africa, onde certas regiões chegam a registrar uma contágio de 25% da população.
Quando se fala em letalidade de um vírus, o Ebola é o primeiro que salta à mente das pessoas. Outra doença relativamente recente na história da humanidade, foi identificada pela primeira vez em 1976, quando duas manifestações de febre hemorrágica ocorreram no Sudão do Sul e no Zaire, atual República Democrática do Congo.
Com uma taxa de mortalidade que varia entre 50% e 90% dos infectados, a doença, naquela ocasião, se espalhou por mais de 500 povos africanos e contaminou muitos médicos e profissionais da saúde. Diversos outros surtos ocorreram na África desde então. O pior deles foi o que durou de 2013 a 2016, com mais de 28 mil casos confirmados e 11 mil mortes.
Assim como a Malária, o Ebola é um vírus que assola sociedades que já enfrentam diversos problemas sócio-econômicos e causam grandes perturbações demográficas: “Quando a economia é débil, é muito difícil suportar os custos de tratamento e prevenção. Falhando este primeiro ponto, a proliferação será cada vez maior. Há um enfraquecimento gradual, mas contínuo, de todos os patamares em que assenta uma sociedade”, explica Joana.
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