Ao contrário da maioria das mulheres de seu tempo que sabiam ler e escrever, Guiomar Torrezão não era de família rica, não recebeu uma herança do pai e nem tinha um marido para acompanhá-la numa viagem para Paris. Ela escolheu, apesar das críticas, da falta de reconhecimento e das dificuldades, a escrita como seu modo de vida.
E apesar de seu nome não ser laureado entre o dos grandes escritores portugueses, é por causa de seu trabalho que foi recebida na casa de gigantes como Alexandre Dumas Filho e Victor Hugo, que recebeu convites para os salões literários, peças de teatro populares e jantares de madames influentes em Paris. Além de ser referida como a “George Sand de Portugal”, embora o título lhe causasse constrangimento.
A Belle Époque, também conhecida como a “era de ouro” da literatura, música, teatro e artes visuais na Europa, transformou Paris na cidade mais cosmopolita e efervescente do mundo. Esse foi um período entre guerras (a Franco-Prussiana e a Primeira Guerra Mundial) e que trouxe mudanças culturais e sociais, com um clima intelectual nos salões e teatros; e boêmio, nos bailes e cabarés.
Foi nessa Paris – que ainda não possuía a Torre Eiffel como símbolo – que em 1885 desembarcou Guiomar Torrezão.
Logo na abertura de seu livro Paris: Impressões de Viagem, Guiomar Torrezão informa a seus leitores duas coisas importantes: a primeira é que “Paris não se descreve”. A segunda é que ela não pretende fazer um guia de viagem ou falar de monumentos e atrações, mas sim dos salões literários, dos jantares, das festas, da vida mundana e das personalidades.
Torrezão, aos 41 anos, viveu por dois meses em Paris, onde, hospedada na casa de uma princesa, passa a ter uma vida social tão intensa, que, ao contrário da pacata Lisboa, precisava ir a quatro bailes após o jantar. Ela quase enlouquece na semana em que tenta comparecer a todos os eventos para os quais é convidada.
A sociedade parisiense a encanta e a intriga. Seus costumes e etiquetas lhe parecem ao mesmo tempo rígidos e hedonistas. “Oh! Paris! A tua alegria, que resiste a todos os revezes, constitui o segredo da tua força invencível, da tua atividade infatigável, da tua sedução irresistível.”
Por conta de seus trabalhos como escritora, jornalista e tradutora, Torrezão faz contatos que garantem a ela a chance de frequentar os mais importantes eventos culturais da época, os salões onde a elite intelectual parisiense encontrava-se diariamente:
“O salão, em Paris, é o núcleo onde se encontram e se completam todos os atrativos, todas as complexas opulências intelectuais e todas as sutis delicadezas da arte de conversar, que fazem da sociedade parisiense, a frívola, a inconsequente, a inconstante, a doida por excelência —, a mais adorável e adorada de todas.”
A escritora também admirava como as mulheres parisienses eram respeitadas por seu talento e valorizavam o trabalho. Guiomar era uma mulher da classe média lisboeta que decidiu viver da escrita, profissão mal paga e particularmente ingrata para o sexo feminino. Para a sociedade portuguesa, que determinava às mulheres apenas uma educação doméstica, Paris era o oásis, o mundo dos sonhos, o lugar que permite à escritora fugir por um período de uma realidade que ela considera mesquinha, arcaica, mal-educada e conservadora.
“E ao apertar-lhe a mão (de Alexandre Dumas Filho), essa mão que traçou com a delicada e tenuíssima correção de um buril lapidando as facetas de um diamante, tantas páginas admiravelmente belas, tantos dramas onde a alma humana é surpreendida e revelada nas suas mais dolorosas e incompreendidas agonias, eu senti uma alegria que me fez naquela hora abençoar a fatal vocação, condenada sem atenuantes nos meus dias cinzentos; — a minha vida literária, tal qual ela pode ser em Portugal, obscura, improfícua, pobre e triste, a que eu devia a felicidade de conhecer Dumas e de me achar na casa da Avenida Villiers.”
O livro Paris: Impressões de Viagem narra todas essas experiências de forma leve e divertida. Torrezão faz comentários sobre as personalidades que conhece e reflete sobre os acontecimentos, empolga-se e emociona-se com Paris sem ser pedante ou enfadonha. Publicada em 1888, pela Typografia Ocidental, no Porto, a obra estava até agora sem uma nova edição.
No mês de agosto, o Clube Grandes Viajantes publica o volume 1 de Paris: Impressões de Viagem. A primeira parte — disponível para todos os assinantes do Clube — fala sobre a vida em Paris, os salões, os encontros com escritores, políticos e artistas.
A ilustração da capa foi desenvolvida pela artista Sylvia Amelia e está disponível para os assinantes em formato de poster, postal e fundo de tela.
Já o segundo volume, em que Guiomar Torrezão traça perfis e biografias de escritoras e atrizes francesas da época, será editado no mês de setembro pelo Clube Grandes Viajantes.
Nascida em Lisboa, em 1844, Guiomar Delfina de Noronha Torrezão cresceu com a mãe viúva e a irmã mais nova. Não há muitas referências sobre sua educação, mas certamente foi fruto de seu próprio esforço para tentar melhorar de vida. Aos 23 anos, lançou uma peça de teatro, a comédia Século XVIII e Século XIX. Dois anos depois, publicou seu primeiro livro: Alma de Mulher (1867), que foi divulgado por Júlio César Machado, no periódico A revolução de setembro:
“O que me impressiona, o que é digno de se ver e se louvar, é que nosso tempo, no nosso país, em Lisboa, onde as senhoras são condenadas a uma educação acanhada, a uma higiene moral deplorável, e à preocupação constante de minúcias que lhes atrofiam a inteligência ao ponto de verem na moda e no traje as condições absolutas da felicidade; (…) o que realmente me surpreende é uma menina, aos vinte anos, forte pela esperança, audaz pelo talento, tente isolada encaminhar a sorte, alcançar nome, posição, futuro, com o atirar aos ventos da publicidade ideias, fantasias, sonhos, imaginação e alma”.
Suas primeiras colaborações em jornais e revistas portugueses foram sob pseudônimos masculinos, como Delfim de Noronha para o Ribaltas e Gambiarras ou Gabriel Cláudio para o Diário Ilustrado. Com o tempo, porém, pôde reivindicar seu nome e seu lugar nas letras, criando a revista Almanach das Senhoras, em 1871, que editou até a sua morte. Também colaborou com a revista brasileira A Mensageira e recebeu em sua publicação textos das colegas brasileiras Presciliana Duarte, Maria Clara da Cunha Santos e Júlia Lopes de Almeida.
O Almanaque de Guiomar, dedicado a instruir suas leitoras e resgatá-las da ignorância da esfera doméstica, rendeu-lhe muitos amigos e também inimigos poderosos — como Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz, por exemplo, que acreditavam que a educação das mulheres deveria ser voltada a atividades domésticas e criticaram publicamente a revista de Torrezão. Independente disso, segundo Andrea Romariz, que fez uma dissertação de Mestrado sobre almanaques da época, o folhetim foi um sucesso: foram 57 edições publicadas ao longo de mais de meio século, com as subscrições esgotadas e distribuição não só em Portugal, mas também no Brasil, Cabo Verde, Angola, Inglaterra e Espanha. Mesmo após a morte da escritora, continuou sendo publicado pela irmã dela, Felismina Torrezão, até 1928.
O fato de ser uma autora de folhetins que escrevia para mulheres também trazia mais desafios. Num artigo de Fátima Outerinho sobre o centenário da morte de Torrezão encontra-se uma fala da própria Guiomar sobre as dificuldades da escrita: “conheço poucas coisas tão difíceis, leitora, como principiar um artigo de maneira que o teu olhar distraído e frio se ilumine de súbito, e o teu espírito fique ali, de repente subjugado. Prender-te nessas questões de letras é caso sério.”
Um exemplo curioso dos recursos utilizados por Torrezão para prender a atenção de suas leitoras, e conseguir trazer assuntos para além da esfera doméstica sem causar estranhamento, foi a sua coluna para um jornal da província do Grão-Pará, no Brasil. As Cartas Lisboetas eram uma coluna de moda, que foram publicadas entre 1879 e 1880. Isso na teoria. Na prática, Guiomar começava a escrever trazendo amenidades. “Introduzia, na sequência das missivas, ideias e opiniões a respeito do feminismo, denunciava opressões, opinava sobre comportamento”, explica Maria Tavares, num artigo sobre As Cartas. E, por fim, concluía sempre a publicação com uma receita útil, a fim de disfarçar sua intenção de escrita dos olhos de algum marido ou pai controlador.
“Vou terminar o meu folhetim indicando à leitora a receita infalível, graças a qual vossa excelência poderá bordar ou distinguir as cores à noite, sem receio de confundir o azul com o verde e o preto com a cor de castanha” (O Liberal do Pará, Carta n.º 2, 03/08/1879).
Independente dos recursos que precisava utilizar, ou dos preconceitos que sofria pela profissão, a produção literária de Guiomar Torrezão foi ampla: poesia, romance, conto, crônica, traduções, teatro, reflexões sociais e feministas. Foram duas coletâneas de crônicas: Meteoros (1875) e No Theatro e na sala (1881), este prefaciado por Camillo Castelo Branco. Para o teatro, escreveu O fraco da baronesa (1878), Dois garotos (1879) e Educação moderna (1884). Além dos romances Rosas Pálidas (1873), A Família Albergaria (1874), Henriqueta (1890), entre outros.
Guiomar Torrezão nunca se casou ou teve filhos. Morreu aos 53 anos, em 1898.
Sobre a escritora, Fialho de Almeida escreveu, em Figuras de Destaque (1923):
“Guiomar Torrezão, que acaba de morrer cardíaca do pavoroso esforço de reagir contra a mesquinharia do espírito do tempo, era uma criatura fadada para menos obscuros destinos do que esse que a acomodou em Lisboa, a arreglar almanaques, e a escrever crônicas elegantes. (…) Guiomar Torrezão não tinha pai nem irmãos que exigissem contas aos desrespeitadores eméritos das mulheres sós; e não tendo constituído família, nem tendo fortuna própria, achou-se na condição de ter que ganhar ela mesma o seu prato e os seus vestidos, escrevendo para jornais todos os dias — isso é, cosendo à pena, em vez de coser à máquina, e não tirando deste esgotante martírio sequer talvez o que as pobres costureiras auferem nos armazéns onde trabalham”.
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Esse livro já havia me chamado a atenção pela capa colorida
("não julgue um livro pela capa" eu sei mas é inevitável).
Com seu post fiquei com mais vontade de ler, parece uma leitura que prende mesmo.