Cozinhas da contingência: pratos históricos que surgiram em crises

 

Poucas vezes, quando colocamos o arroz novinho com feijão no prato, nos perguntamos o porquê daquela ser o nossa refeição de todo dia. A gastronomia de um local e os hábitos de alimentação das pessoas dali são produto de diversos contextos históricos, econômicos e culturais, que são passados de geração em geração, às vezes por séculos, e representam uma fonte rica de informação de um povo, camuflados de temperos e sabores.

São inúmeros os motivos que fazem com que um prato ganhe as mesas de uma comunidade. A fartura ou escassez de determinado ingrediente, o fluxo de imigrantes que carregam consigo influências de seus locais de origem, a necessidade – ainda que intuitiva –  de fornecer esse ou aquele nutriente ao corpo, modas gastronômicas que acabam vindo para ficar… Mas poucas coisas impactam tanto os hábitos alimentares quanto a contingência provocada pelas crises.

Segundo Ashley Rose Young, historiadora do American Food History Project do Museu Nacional de História Americana, em Washington D.C., contou ao The Atlantic, “rupturas impactam inúmeros padrões em nossas vidas cotidianas. Um dos primeiros setores que podem ser atingidos é a cultura alimentar. É algo que fazemos todos os dias: adquirir e consumir comida”.

Muitas dessas mudanças emergenciais não permanecem, é verdade. Embora a limitação seja um importante gatilho para a inventividade, uma vez que ela desaparece, adaptar-se deixa de ser necessário. As pessoas tendem a aproveitar rapidamente a variedade e o conforto quando vivem tempos mais estáveis e fartos, mas algumas técnicas, costumes e ingredientes conseguem encontrar seu caminho para a tradição culinária mesmo após os períodos de crise.

Pães, bolos e lattes: as cozinhas na quarentena e crise do Coronavírus

“Se vocês continuarem fazendo pão caseiro, não vai sobrar levedura para fazer cerveja e aí sim teremos um problema. Estão avisados.”, escreveu o usuário @menoselectron em sua conta no Twitter. O autor do tuíte é espanhol, mas a piada é com uma tendencia global. Desde início da crise do coronavírus e do isolamento social, as buscas por “como fazer pão” e novas receitas de bolo dispararam no Google, em vários idiomas.

Não se sabe ao certo o que despertou a tendência. Talvez seja o conforto trazido pelo cheiro da massa assando, aliada à busca por atividades consideradas terapêuticas para se fazer dentro de casa: cozinhar e fazer atividades manuais – como o crochê -, ajudam a passar o tempo e a focar no presente, espantando a ansiedade e a angústia que a pandemia pode gerar. No final, ainda há o bônus de ter uma receita gostosa de comida de conforto para saborear.

Além de pães caseiros variados, no Brasil a receita mais buscada é a do já amado bolo de cenoura com cobertura de chocolate, o que demonstra o desejo de se voltar para a comida preparada por nossas mães e avós na infância. Na Inglaterra, foi o pão de banana ganhou o primeiro lugar nas buscas.

Para a jornalista e cozinheira nas horas vagas Alexandra Duarte, assar bolos nos fins de semana já era um hábito, mas ela notou que a atividade despertou o interesse de mais amigos durante a quarentena: “gente que nunca tinha feito bolo começou a fazer”, observa.

Para ela, o novo hobby tem a ver com o fato de que uma parcela da população conseguiu uma maior disponibilidade de tempo durante a quarentena, mas também nasce como uma maneira de dividir o isolamento e nos aproximar por meio das redes sociais, uma vez que os produtos das receitas geram fotos bonitas de serem compartilhadas e são, tradicionalmente, relacionadas a gestos de carinho e de partilha. E, agora, foram transferidas para o compartilhamento virtual:

“Toda vez que alguém fala de cozinha afetiva, é sempre um bolo, um pão. Assar comidas, mais do que cozinhar, é uma relação de espera/expectativa, de afeto. Na Inglaterra, o verbo bake é muito relacionado a assar algo para alguém. Então acho que ainda tem essa camada de ser uma cozinha menos trivial, de mais expectativa e desafio e que serve de presente. É uma ocupação em tempos tão difíceis.”

Gráfico mostra o aumento nas buscas por “receita de pão” e “baking” durante a quarentena

Fato é que hashtags como #covidbaking e #isolationbaking estão aí para provar que assar e compartilhar os bolos e pães fazem parte da nossa cultura de quarentena e são uma forma de tornar esse período mais tolerável.

Tendência parecida foi a do Café Dalgona, uma bebida cremosa fácil de fazer em casa e que, embora já exista há algum tempo, se tornou viral na quarentena ao render milhares de fotos compartilhadas e tutoriais.

Resta saber se esses novos hábitos e receitas vão perdurar para além da crise.

A revolução veio com as batatas

Nativa da Cordilheira do Andes, a batata chegou a ser esnobada na Europa assim que desembarcou no continente. Considerada comida de porcos ou de pessoas em situação de extrema miséria, a reputação do tubérculo sofreu também com a proliferação de fake news a seu respeito: dizia-se que era causadora de diversas enfermidades, incluindo a lepra – a despeito da doença já ser conhecida no continente há séculos.

No início do século 18, no entanto, a França foi assolada por um longo período de fome causado pela perda total das colheitas devido a um inverno mais rigoroso que o normal. No ano seguinte, foi a vez da Prússia: cerca de 40% da população morreu de inanição na época.

Nativa da América do Sul, a batata foi a principal arma europeia para combater a fome no século 18

Esse tipo de catástrofe não era incomum na Europa naquela época e logo a batata se mostrou uma poderosa aliada nutricional. Em 1740, Frederico, o Grande, distribuiu na Prússia sementes e um manual que ensinava a cultivá-la. Logo, a raiz sul-americana se espalhou pelas plantações de diversos países do continente e se transformou em ingrediente indispensável nos pratos europeus.

“Caso essa raiz se tornasse um dia, em qualquer parte da Europa, o que é o arroz em algumas regiões arrozeiras, o alimento vegetal comum e favorito do povo, de modo a ocupar a mesma proporção de terras cultivadas que o trigo e outros tipos de grãos para a alimentação humana ocupam hoje, a mesma quantidade de terra sustentaria um número muito maior de pessoas e a população aumentaria.”

Adam Smith em A Riqueza das Nações

A batata foi uma grande responsável por livrar a Europa da fome e transformou os hábitos alimentares locais, mas não só isso. Segundo o Huffpost Brasil, elas tiveram um papel importantíssimo ao manter a mão de obra bem alimentada e disponível para outras atividades além da produção de alimentos, possibilitando assim a revolução industrial.

Ainda hoje, quase todos os países europeus têm pratos típicos que têm a batata como um dos ingredientes principais. A batata frita, um favorito universal, foi inventada na Bélgica. E o tradicional Fish em Chips é sempre lembrado como um dos símbolos da culinária inglesa. Na Espanha, temos a tortilla de patatas. Na Suíça, a batata rusti. Na Alemanha, há um cardápio inteiro feito de batatas: sopas, purês, batatas recheadas e servidas em salada.

A crise de 1929 refletida nos pratos

A Grande Depressão que se originou a partir da quebra da Bolsa de Nova York teve um efeito gigantesco no orçamento – e no prato – das famílias norte-americanas. Durante os anos da crise, as pessoas tiveram que se virar para se alimentar com o que havia disponível.

Receitas já tradicionais foram adaptadas. A americaníssima torta de maçã ganhou uma versão que sequer levava o ingrediente principal: a mock apple pie, que, no lugar da fruta, levava biscoito tipo cracker, canela, suco de limão e açúcar para simular o gosto.

Embora já existissem antes, foi também durante a crise que as cadeias de fast food se espalharam pelos Estados Unidos. Hambúrgueres eram uma refeição barata e que levava poucos ingredientes. Ross Davis, dono do Hamburger Inn, no estado do Oklahoma, teve sucesso com uma receita que utilizava quantidades pequenas de carne e uma grande quantidade de cebola frita: o fried onion burger é, até os dias de hoje, um grande favorito no estado. Já no Mississipi, o slugburger, feito com uma mistura de carne moída e farinha de batata, foi outra variação que veio para ficar.

Mais ou norte, na província canadense do Quebec, um prato veio a marcar um status comum do momento: o Pouding Chômeur, traduzido literalmente como “Pudim do Desempregado”, é uma sobremesa barata criada por mulheres operárias nos anos 1930. É feita com uma camada de bolo simples sob uma camada de caramelo ou maple syrup (xarope de bordo) quente.

Os quitutes da guerra

As guerras foram grandes gatilhos de mudanças de hábitos alimentares. Não apenas pela necessidade de se desenvolver alimentação barata, nutritiva e não-perecível para as tropas, mas também porque elas acabavam provocando o desaparecimento de certos produtos do mercado.

No Brasil, talvez o exemplo mais famoso seja o brigadeiro. Hoje a estrela das festas de aniversário, o doce só surgiu por que alguns produtos básicos sofreram racionamento durante a Segunda Guerra Mundial. Entre eles, ovos, leite, açúcar, frutas e nozes importadas, que eram comumente usadas em sobremesas.

Além disso, o próprio leite condensado, matéria-prima do brigadeiro, foi desenvolvido com o objetivo de esterilizar o leite e permitir seu uso durante da primeira e segunda guerras mundiais.

A Segunda Guerra também foi a responsável pela invenção do delicioso creme de avelãs. Nesse caso, foram os italianos que tiveram que se virar para produzir um substituto para o creme de chocolate, sobremesa querida no país até então. O conflito levou o preço do chocolate às alturas, tornando a receita um luxo. Foi então que a família Ferrero testou uma mistura de creme de amêndoas, açúcar e um pouquinho de chocolate que, mais tarde, ganhou o nome de Nutella.

Diversas invenções gastronômicas que surgiram nas grandes guerras do século 20 hoje fazem parte da nossa lista de compras de supermercado: café instantâneo, barrinhas de cereal, pão de forma e até as batatas Pringles foram criadas para alimentar os exércitos nos campos de batalha.

Fontes:
https://www.theatlantic.com/culture/archive/2020/04/quarantine-coffee-has-historical-precedent/610645/https://study.com/academy/lesson/food-during-the-great-depression-lesson-for-kids.htmlhttps://www.atlasobscura.com/articles/unusual-dishes-to-make-with-pantry-stapleshttps://www.huffpostbrasil.com/rodrigo-da-silva/como-a-batata-transformou-o-mundo_b_6725378.html

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones e no Youtube. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

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Natália Becattini

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