No início do século 20, o Rio de Janeiro era uma bomba relógio. Seus 700 mil habitantes conviviam com lixo, falta d’água, problemas graves de saneamento básico e doenças como varíola, tuberculose, hanseníase, tifo, sarampo, escarlatina, difteria, coqueluche, febre amarela e até peste bubônica.
As tentativas do governo local de conter esses problemas não foram apenas impopulares. Resultaram numa declaração de estado de sítio, 945 pessoas presas, 30 mortos, 110 feridos e 461 deportados para o Acre – e olha que esses são só os números oficiais. A maior rebelião urbana que o país viveu entrou para a história como a Revolta da Vacina.
Para explicar o que foi a Revolta da Vacina, conversamos com uma historiadora da Casa Oswaldo Cruz, pesquisamos recortes de jornal da época, livros e artigos científicos que recontam essa história. Além de entender a rebelião, também traçamos paralelos entre a Revolta da Vacina, em 1904, as fakenews, os movimentos antivacinas e a pandemia de Covid-19.
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A varíola é uma doença muito antiga: foi encontrada em múmias no Egito, matou monarcas na Europa e, acredita-se, foi usada como arma biológica pelos exércitos colonizadores espanhóis contra o Império Inca. Ao longo do século 20, com sua alta taxa de letalidade, estima-se que matou de 300 a 500 milhões de pessoas no mundo.
A varíola causa bolhas cheias de pus no corpo do doente. Por isso, no Brasil e em Portugal ficou conhecida como “bexiga”. Os poucos que sobreviviam à doença acabavam sendo conhecidos como bexiguentos, por conta das cicatrizes deixadas pelo vírus. Dentre os ilustres bexiguentos estava a Imperatriz do Brasil, Carlota Joaquina, esposa de Dom João VI.
Foi para combater a varíola que surgiu a primeira vacina do mundo. Em 1796, o inglês Edward Jenner observou como mulheres que lidavam com vacas leiteiras não contraíam a doença. Pôs-se a investigar e percebeu que a imunidade era devido à infecção com a varíola bovina, conhecida como vaccinia, que era bem leve. Com isso, ele criou a prática de inocular nas pessoas o vírus vaccinia para gerar anticorpos.
Importante dizer que na China Medieval a prática de inocular pacientes com vírus menos infecciosos já era comum, segundo explica o autor Joseph Needham, no livro “Ciência e Civilização na China“.
Em 1980, após muitos séculos de combate à varíola e diversas campanhas de vacinação, a Organização Mundial de Saúde declarou que a doença estava erradicada no planeta.
Desde o período imperial houve tentativas de imunizar a população brasileira contra a varíola. Segundo a Agência Senado, os governos de Dom João VI, Dom Pedro I e Dom Pedro II ofereciam as vacinas gratuitamente, mas os súditos fugiam dos vacinadores. Documentos do Arquivo do Senado, em Brasília, mostram uma baixa adesão às campanhas de vacinação.
Segundo a Agência, Dom João VI criou aqui a Junta de Instituição Vacínica da Corte três anos após vir para o Brasil. O objetivo era imunizar a população no Rio de Janeiro e nas províncias. “No Império, a questão das epidemias era controlada pelo poder central. A vacinação era obrigatória – mas não era mandatória. Logo, os escravos eram bastante vacinados, e os imigrantes tinham baixa vacinação”, explica a pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz e doutora em história, Gisele Sanglard.
Segundo Sanglard, uma das mudanças que trouxe a Proclamação da República, em 1889, foi o federalismo: as questões de saúde passaram a ser responsabilidade de cada estado. Por isso, mesmo com a epidemia de varíola em todos estados do Brasil, as políticas de Oswaldo Cruz e o contexto da Revolta da Vacina ficaram limitados à cidade do Rio de Janeiro, então capital do país.
“A partir de 1870, a classe pobre começa a ser vista como perigosa, por conta da desordem e sobretudo pelos contágios das doenças. O pensamento da época era: ‘É preciso resolver o problema de saúde pública porque os pobres nos incomodam, porque se a gente não resolver o problema que pode atingir a moradia popular, a epidemia pode chegar onde mora a nobreza”’, diz Gisele Sanglard, pesquisadora da Casa Oswaldo Cruz
No artigo “Vacinação, varíola e uma cultura da imunização no Brasil“, o pesquisador da Casa Oswaldo Cruz e cientista político Gilberto Hochman aborda as campanhas de vacinação desde o final do século 19 até a que erradicou a varíola no Brasil, entre 1966-1973, com a vacinação e revacinação de 80 milhões de pessoas.
Hochman explica que a Proclamação da República, em novembro de 1889, trouxe metas de modernização para o Brasil. Metas que tinham um grande impedimento: a paralisação da capital, o Rio de Janeiro, por conta de epidemias de febre amarela e varíola.
“A primeira tentativa efetiva para mudar o status quo sanitário e a péssima imagem internacional da capital federal e do Brasil foi uma ampla reforma urbana inspirada nas reformas de Haussmann em Paris. Essas reformas foram acompanhadas por grandes campanhas sanitárias contra a febre amarela, a varíola e a peste bubônica durante a presidência de Rodrigues Alves (1903-1906)”.
Quem liderou as campanhas foi o médico Oswaldo Cruz, diretor de saúde pública entre 1903 e 1909. Ele também foi o diretor do Instituto Soroterápico Federal, mais tarde renomeado para Instituto Oswaldo Cruz, focado na produção de soros e vacinas.
“Oswaldo Cruz estudou na França e retornou ao Brasil no fim do século 19. Ele estava acompanhando todas as discussões da saúde pública francesas, incluindo a lei de 1902, que dava poderes de polícia aos prefeitos. Ele fez uma lei semelhante no Rio de Janeiro e recebeu plenos poderes do presidente”, explica Gisele Sanglard.
O uso do poder de polícia para resolver as questões de saúde pública pode ser entendido pela dinâmica das chamadas Brigadas Mata-Mosquitos. Fardados, os empregados da Diretoria Geral de Saúde Pública podiam entrar em casas e até queimar as residências, roupas e móveis, se eles considerassem que aquela casa era foco do Aedes aegypti.
“Quando iam fazer a fumigação, os moradores precisavam sair. Ele jogavam veneno e colocavam um lençol fechando a casa toda. Poder de policia era o poder para tirar um morador da própria casa e jogar veneno”, conta a pesquisadora.
Os dados da Biblioteca Nacional mostram que, apesar de bastante truculentas, as medidas foram eficientes: em 1904, por volta de 110 mil visitas haviam sido feitas e 626 casas e prédios foram interditados. As mortes, que dois anos antes estavam na casa dos mil, caíram para apenas 48.
Naquele ano, quando o Rio de Janeiro já registrava quase sete mil casos de varíola nos primeiros meses, Oswaldo Cruz apresentou ao Congresso um projeto de lei, com inspiração francesa, que reinstaurava a obrigatoriedade da vacinação e revacinação da população brasileira.
“A nova lei continha cláusulas rigorosas que incluíam multas aos refratários e a exigência de atestado de vacinação para matrículas nas escolas, acesso a empregos públicos, casamentos e viagens, além de possibilitar aos serviços sanitários adentrar em residências para vacinar seus moradores”, escreve o pesquisador Gilberto Hochman.
Não apenas as camadas populares atingidas pelas brigadas de saúde eram contrárias à nova lei de vacinação obrigatória. Artigos de jornais da época revelam que a maior parte da população da cidade, por motivos variados, se opunha à lei.
Carlos Fidelis Ponte, no artigo “Vacinas e campanhas: as imagens de uma história a ser contada“, aponta a diversidade de vozes: “A oposição reunia grupos diversificados e muitas vezes antagônicos entre si. Integravam as hostes antigovernistas militares ligados a Floriano Peixoto; intelectuais do apostolado positivista; republicanos radicais; monarquistas e parcelas da população afetadas pelo ‘bota abaixo’, nome pelo qual ficou conhecida a política de reorganização do espaço urbano empreendida pelo prefeito do Distrito Federal, Pereira Passos.”
É o que mostram alguns recortes de jornais de 1904, obtidos na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional:
Vacina ou morte: “O atentado planejado alveja o que de mais sagrado contém o patrimônio de cada cidadão: pretende-se esmagar a liberdade individual sob a força bruta, transformar o domicílio, santuário que a constituição garante inviolável, em valhecouto de canalhas, onde os esbirros policiais hão de floretear o cacete e manejar a laracha para abrir campo à higiene oficial.”
Proezas da higiene: “Raro é o dia em que os esbirros do sr. Oswaldo Cruz não fornecem ao noticiário dos jornais uma nota revoltante e lúgubre, aumentando a série de crimes que vão praticando em nome da saúde pública. A população já está cansada dessa odiosa tirania, que não sabemos quando terá um fim, prestigiada por um governo violento em certos ramos de administração, absolutamente inepto e condescendente em outros, que dizem diretamente com as garantias do cidadão. ”
A epidemia de varíola: “O sr. Oswaldo Cruz comunicou ao sr. Sebra que a epidemia de varíola continua a grassar com a maior intensidade, a ponto do hospital S. Sebastião não ter compartimentos bastantes para receber doentes e ser insuficiente o material de remoção, de que dispõe a diretoria de saúde pública para conduzir enfermos, apesar de ele ser numeroso. Afirmou ainda o sr. Oswaldo Cruz que tudo isso é devido à população não querer vacinar-se. Cada inspetor sanitário que vacinava trezentas pessoas por semana o faz presentemente a doze ou quinze.”
Contra a obrigatoriedade da vacinação: “Vai apresentar à Câmara uma representação contra o projeto da vacina obrigatória. Assinam-na mais de três mil cidadãos, entre os quais generais de altas patentes do Exercito e da Armada, médicos, advogados, engenheiros, membros proeminentes de todas as classes sociais. Digno de nota: muitas das pessoas que assinam esse documento declaram que são vacinadas e acreditam, como o orador, na utilidade da inoculação da lympra jenneriana. Mas todos eles protestam contra o atentado que se premedita contra as liberdades constitucionais.”
Mesmo com tanta oposição, a lei pela obrigatoriedade da vacina foi aprovada em outubro de 1904 e regulamentada em 9 de novembro. “Não se cogitou a preparação psicológica da população, da qual só se exigia a submissão incondicional. Essa insensibilidade política e tecnocrática foi fatal para a lei da vacina obrigatória”, afirma Nicolau Sevcenko, no livro A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes.
No dia seguinte, a população foi às ruas manifestar sua revolta. “Grandes ajuntamentos tomaram a rua do Ouvidor, a praça Tiradentes, o largo de São Francisco de Paula, onde oradores populares vociferavam contra tal lei e o regulamento da vacina, instigando o povo à rebeldia.
Segundo Sevcenko, a “brigada policial foi acionada e orientada a agir contra as ameaças à ordem publica”.
O escritor Lima Barreto, que viu de perto a revolta, escreveu: “havia a poeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o desordeiro profissional, o pequeno-burguês, empregado, caixeiro e estudante; havia emissário de políticos descontentes. Todos se misturavam, afrontavam as balas…”
A confusão seguiu por alguns dias. “Houve de tudo ontem. Tiros, gritos, vaias, interrupção de trânsito, estabelecimentos e casas de espetáculos fechadas, bondes assaltados e bondes queimados, lampiões quebrados à pedrada, árvores derrubadas, edifícios públicos e particulares deteriorados”, dizia a edição de 14 de novembro de 1904 da Gazeta de Notícias.
No dia 15, uma tentativa de golpe de estado de apoiadores de Floriano Peixoto e do movimento positivista foi derrotada. No dia seguinte, foi decretado estado de sítio e a vacinação obrigatória suspensa. A revolta foi sufocada, com muitas mortes e presos.
Segundo o livro de Sevcenko, jamais saberemos os números reais: “Nunca se contaram os mortos da Revolta da Vacina. Nem seria possível, pois muitos, como veremos, foram morrer bem longe do palco dos acontecimentos. Seriam inúmeros, centenas, milhares, mais é impossível avaliar quantos. A autoridade policial, como seria de se esperar, apresentou números sóbrios e precisos, na tentativa de reduzir uma autêntica rebelião social à caricatura de uma baderna urbana: fútil, atabalhoada, inconsequente.”
O escritor fala também da forte violência policial, mesmo após a revolta, em investigações e tribunais: “O objetivo parecia ser mais amplo: eliminar todo o excedente humano potencialmente turbulento da cidade, fator permanente de desassossego para as autoridades”. Segundo Sevcenko, o chefe da polícia chega a comparar pessoas aos ratos e mosquitos que devem ser exterminados.
“As fontes oficiais insistiam em descaracterizar os participantes da revolta, certamente a fim de ocultar o fracasso político que significaria admitir que a maioria da população se rebelou com a sua autoridade”, Nicolau Sevcenko
“Longe de ser apenas um movimento propiciado por disputas entre as elites, a revolta é um evento emblemático.” Escreve o pesquisador Carlos Fidelis Ponte. “Trata-se de um momento altamente significativo para todos aqueles que trabalham com saúde pública. Lá estão presentes aspectos que não podem ser ignorados pelas autoridades sanitárias e por historiadores interessados na temática das vacinas e das campanhas de vacinação.”
A Agência Fiocruz conta que, em 1908, uma violenta epidemia de varíola no Rio de Janeiro levou às pessoas a se vacinarem voluntariamente. O cientista político Gilberto Hochman também aponta: “passado esse período mais turbulento, a vacinação continuou sendo realizada e foi sendo incorporada lentamente ao cotidiano da população da capital e das principais cidades do país”.
A varíola foi erradicada no Brasil 60 anos após a Revolta da Vacina. Prova do sucesso das campanhas de vacinação.
Após décadas da erradicação da varíola e de outras campanhas de vacinação de sucesso no Brasil, o movimento antivacina surge trazendo um retrocesso em termos de saúde pública em todo o planeta. Pergunto a Gisele Sanglard se é possível explicar essa mudança:
“O antivacina quer ser um organismo puro, quer ter a liberdade de escolher se vacinar ou não. Usam argumentos muito próximos daqueles que negavam a vacinação, lá em 1904. Mas aquelas pessoas não tinham a informação que temos agora. Hoje, já não temos a varíola, mas o sarampo teve um estouro de casos. As pessoas não se vacinam e o vírus volta a circular”.
Também peço a pesquisadora para relacionar a Revolta da Vacina e os discursos antigoverno com o compartilhamento de notícias falsas que vemos hoje. “O discurso científico, mesmo na época da Revolta, era muito forte e tinha um peso importante. Hoje, a gente vê uma desqualificação da ciência. Estamos vivendo a era da hiperinformação, que não necessariamente é de qualidade”.
Ela completa: “Na Revolta da Vacina, o grosso da população era analfabeta. Quem tinha acesso às notícias eram poucas pessoas. Era mais fácil desmentir, ter contraprova, eram menos veículos de imprensa e menos complicado. Hoje, as fakenews ganham uma dimensão muito grande, porque as pessoas têm acesso via Whatsapp, Facebook, às noticias mais escalafobéticas. Falta visão crítica e compartilham achismo. Não existe racionalidade, existem paixões.”
Tudo isso está conectado à pandemia de coronavírus. E gera uma negação às recomendações da Organização Mundial da Saúde: “Durante todas as crises epidêmicas, em todas elas, sempre houve matérias de jornais condenando as medidas de saúde publica. Sempre teve um médico, um curandeiro, um charlatão querendo vender seus serviços, suas curas. Não só no Brasil, também fora. O que a gente nunca viu foi presidente condenando as medidas de saúde pública”.
A pesquisadora acredita que o que ajuda na adesão de campanhas de vacina ou de saúde pública é a memória de uma doença. Com o Covid-19, ainda há o agravante de que as pessoas acham que, se pegarem a doença, nada vai acontecer. “Só quando os mortos não forem apenas números, mas alguém próximo, é que muita gente vai acordar”.
Tomando como ponto de partida a cidade do Rio de Janeiro e a demolição de seus cortiços, passando pelas polêmicas entre infeccionistas e contagionistas em torno da transmissão da febre amarela e pela resistência das comunidades negras à vacina antivariólica, Sidney Chalhoub escreveu uma “história na encruzilhada de muitas histórias”.
De forma apaixonante e extremamente bem-humorada, Cidade febril reinterpreta esses e outros conflitos à luz da história social. O resultado é uma obra riquíssima, que mapeia a formação das políticas de saúde pública no Brasil, as quais, longe de se limitarem ao século XIX, até hoje influem em nosso cotidiano com força assustadora. Prêmio Jabuti 1997 de Melhor Ensaio. Sabia mais aqui.
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Bom dia !
Bela matéria, obrigado.
Parece que o Brasil retrocedeu, e vem aí a mova epidemia de varíola, so aguardar.
Amo historia
muito explicativo!
obrigada