Rua Sapucaí, em BH: restaurantes, mirante urbano e história

Com a cerveja apoiada na mureta, eu esperava pelo pôr do sol mais praiano da cidade que não tem mar. A Rua Sapucaí – uma das mais antigas de Belo Horizonte – faz a divisão entre o centro e o bairro Floresta.

Localizada acima do nível das linhas de trem, do canalizado Ribeirão Arrudas e da enorme Praça da Estação, a Sapucaí foi durante muito tempo um local de passagem e nada mais. Até ser redescoberta como um mirante para a capital mineira.

E não qualquer mirante. Da Sapucaí, o skyline de BH enche o mundo – dos prédios do baixo centro até os edifícios do outro lado da metrópole. A Serra do Curral também está presente, emoldurando a cidade, assim como o Parque Municipal e suas milhares de árvores.

E ainda tem o Viaduto de Santa Tereza e seus arcos de concreto que desafiavam o alpinista Carlos Drummond de Andrade. O escritor morou na Rua Silva Jardim, a poucos quarteirões dali, por mais de uma década.

Deslumbrado pela vista da Rua Sapucaí, em BH

Foi esse visual da Sapucaí que encantou André Hallak, um dos sócios da Salumeria Central, restaurante que nasceu em 2012 e que é apontado como um dos responsáveis pela redescoberta da rua.

“Não tinha nenhum estabelecimento noturno aqui, apenas bares muito simples e que funcionavam só de dia”, explica ele. Não bastou ver a placa de aluga-se e a beleza da paisagem – foi preciso superar a má fama da Sapucaí.

“A rua era vista de uma forma muito ruim, como uma parte degradada da cidade. As pessoas tinham medo de passar aqui, a Sapucaí ficava completamente deserta à noite, não tinha um carro parado na porta”.

Andre Hallak –  Salumeria Central

Não demorou para os clientes começarem a chegar e logo outro restaurante, o Peccatore, dos mesmos sócios e especializado em frutos do mar, abriu ao lado da Salumeria.

“Foi uma mudança gradativa. Nasceu uma vida, as pessoas começaram a frequentar a rua. De repente deu um boom, começaram a abrir mais bares, a vocação cultural passou a se fortalecer”, explica André, que lembra que a Rua Sapucaí virou locação para filmes, vídeos e ensaios fotográficos.

Pôr do sol a partir da rua Sapucaí

Se a transformação em eixo gastronômico de BH veio a partir de 2012, a vocação cultural dessa área já tem décadas. Começou com Drummond, passou por Fernando Sabino e seguiu com Rômulo Paes, escritor mineiro que imortalizou uma frase importante para essa parte da cidade: “Minha Vida é esta, subir Bahia e descer Floresta”, uma alusão ao percurso feito, todos os dias, entre o bairro e o centro, passando pelo Viaduto de Santa Tereza e pela Rua da Bahia.

Até Noel Rosa, que viveu alguns meses em Belo Horizonte enquanto se tratava de tuberculose, morou no Floresta, que é um dos bairros mais antigos de BH e deve seu nome a um certo Hotel Floresta, que funcionou ali nos primeiros anos da capital. A Sapucaí também abrigou a primeira favela de BH, chamada Alto da Estação, que surgiu logo após a inauguração da cidade planejada.

Enquanto percorriam o Viaduto de Santa Tereza – que marca uma das pontas da Rua Sapucaí -, décadas e décadas de belo-horizontinos contemplavam a cidade que, com pressa, crescia. O passar dos anos trouxe equipamentos culturais, como o Museu de Artes e Ofícios, que funciona no prédio da antiga estação da Central do Brasil, o Centro Cultural da UFMG, do outro lado da Praça da Estação, e a Serraria Souza Pinto.

Embaixo do viaduto de Santa Tereza, surgiu o Duelo de MCs, enquanto a Praça da Estação viu seu concreto ser transformado em praia – nascia assim a Praia da Estação, e, por tabela, renascia o carnaval de Belo Horizonte. A redescoberta da Rua Sapucaí está inserida num movimento maior, em que o baixo centro de Belo Horizonte vem sendo ocupado por pessoas e movimentos criativos.

Rua Sapucaí num dia de carnaval 

Mais bares na rua Sapucaí, BH

Outro passo importante na redescoberta da rua Sapucaí foi o nascimento da Benfeitoria, um espaço cultural e bar que funcionava no número 153. Jordana Menezes, uma das sócias da Benfs, conta que também foi a vista que motivou o negócio.

“A Sapucaí tem aquela vista maravilhosa. É você estar no meio do centro e ter aquele respiro, por conta da Praça da Estação e da Avenida dos Andradas, até chegarem os próximos prédios”, conta. E acrescenta: apesar de ter passado anos esquecida pelo belo-horizontino, a Sapucaí sempre foi uma via importante da cidade.

“Tem uma circulação de pessoas na Sapucaí que é muito ampla. Tem todo tipo de gente – rico, pobre, empresário, tem gente indo pegar o metrô… é uma vida muito rica que acontece ali e as pessoas não tinham essa visão do lugar, era uma rua só de passagem. Como a gente vive habituado a só passar, mas não vê os lugares, está sempre com os celulares e olhando para baixo 100% do tempo”.

Jordana Menezes – Benfeitoria

Para aproveitar o visual e o fluxo de pessoas, a Benfeitoria fez um parklet numa das muitas vagas de estacionamento da rua. Como Jordana faz questão de lembrar, o parklet da Benfs não ficava em frente ao prédio, funcionando como uma extensão das mesas do estabelecimento, mas do outro lado da rua e colado com a mureta – nascia assim um estacionamento para pessoas, que começou a ser usado mesmo nos momentos em que a Benfs estava fechada.

“Eu achava a coisa mais bonita quando passava lá e tinha gente sentada no parklet, tinha gente lendo, vendo o pôr do sol”.

Viaduto de Santa Tereza, na esquina com a Rua Sapucaí, e os arcos que eram escalados por Drummond (Foto: Por Ronaldo Almeida, Shutterstock)

Depois de quatro anos agitando as noites da capital mineira, a Benfeitoria fechou as portas. Os sócios, exaustos e querendo encerrar um ciclo, foram perseguir outros sonhos.

“Quando a gente fechou, muita gente falou: mas o que vai ser da Sapucaí sem a Benfeitoria? Mas a Sapucaí é muito maior que os estabelecimentos que estão ali. O negócio é que ninguém via ela antes e agora as pessoas estão vendo um pouco mais. A Sapucaí vai continuar tendo movimento mesmo que não existam bares e restaurantes ali”

Jordana Menezes – Benfeitoria

Rua Sapucaí, o primeiro mirante de arte urbana do mundo

Outros estabelecimentos, de bares a hamburguerias, abriram na Sapucaí nos últimos anos. O Dorsê, quase na esquina com a Avenida Francisco Salles, foi outro que se tornou um ponto da noite belo-horizontina, com direito a ampliação para atender melhor ao crescimento constante.

Mas foi o Circuito Urbano de Arte (CURA) que deu a cartada final em transformar a Sapucaí num dos pontos culturais e gastronômicos mais importantes da cidade.

Parque Municipal, centro de BH e Serra do Curral. Vista de um prédio da Rua Sapucaí.

O primeiro festival de pinturas urbanas de Belo Horizonte nasceu em 2017, quando quatro prédios e dois muros foram pintados. Foi assim que a Rua Sapucaí se tornou o primeiro mirante de arte urbana do mundo.

Os murais têm entre 450 e 1700 metros quadrados e podem ser observados a partir da rua. A lista de obras do CURA inclui o mural mais alto pintado por uma mulher na América Latina.

Após mapear quais prédios têm empenas (paredes) que poderiam receber os trabalhos e que são avistadas a partir da Sapucaí, o CURA procura os síndicos, donos ou responsáveis pelos edifícios.

“No CURA 1 eu demorei um ano para conseguir as autorizações, no CURA 2 eu demorei dois dias. Hoje a situação se inverteu, tem prédio que nos procura querendo receber as pinturas”, explica Juliana Flores, uma das idealizadoras do festival, que em 2021 escapou dos limites da Sapucaí e conquistou a Praça Saul Soares.

“Não existe outro mirante de arte urbana no mundo. O que existe é o High Line Park, em Nova York, e o Minhocão, em São Paulo, que são avenidas. E nessas avenidas você vai andando e vendo obras ao longo delas, mas você não vê de um único ponto várias obras como hoje ocorre da rua Sapucaí”.

Juliana Flores, CURA

Durante a realização das pinturas, o CURA organiza aulões e uma intensa programação cultural na Rua Sapucaí, que é tomada por cadeiras de praia e bares.

“O CURA vai discutir a gentrificação, até porque a gente não sabe se isso está acontecendo. Inclusive, queremos pensar criticamente o papel do CURA nesse processo”, explica Juliana.

“O nosso desejo é que a Rua Sapucaí não seja um espaço de segregação social, mas um lugar onde cabe todo mundo. Que qualquer pessoa, de qualquer classe social, se sinta acolhido e bem-vindo na rua. O que a gente teme é que, com o desenvolvimento do comércio, esse seja um espaço cada vez mais privilegiado e que vai expulsando as pessoas mais pobres”.

Juliana Flores, CURA

Juliana diz que é contra a transformação da rua numa via só para pedestres, uma proposta que foi levantada há alguns anos, mas que nunca saiu do papel. “Todos os estudos sobre gentrificação de ruas feitos no mundo mostram que isso afasta as pessoas de menor poder aquisitivo, que antes passavam ali para pegar um ônibus. Para a classe média é lindo, mas o movimento de fechar ruas é algo que, historicamente, acaba excluindo justamente o mais pobre.

Veja também: Gentrificação, você conhece essa palavra?
Quem é o dono de uma cidade?

Para ela, a saída é transformar a Sapucaí numa zona de trânsito diferenciado, com velocidade reduzida para veículos. A presença de banheiros públicos, para as pessoas que querem apenas curtir o visual, sem frequentar os bares e restaurantes da rua, é outro ponto levantado não só por ela, mas também por comerciantes da região.

“Tem um lado muito legal, que é a ocupação da cidade, mas agora a gente está tendo até um problema com excesso de movimento sem estrutura para receber as pessoas. Às vezes fica muito lixo na rua, muita gente urinando na rua, um clima um pouco complicado quando o movimento é maior do que a Sapucaí é capaz de receber”, pondera Andre Hallak.

Aproveitando a presença do CURA e um aniversário de Belo Horizonte, a prefeitura instalou duas lunetas para a observação das pinturas na rua Sapucaí. “O morador e o visitante terão a experiência de enxergar esse museu a céu aberto de arte urbana de outra maneira, de se aproximar ainda mais dos trabalhos que estão nessa galeria”, explica Marcos Boffa, Diretor de Políticas de Turismo e Inovação da Belotur, o órgão municipal de turismo de Belo Horizonte.

Para ele, é importante que o poder público acompanhe o processo de redescoberta da Sapucaí, com cuidados com o trânsito, a segurança e com a infraestrutura básica.

“Todo processo de revitalização de espaços urbanos é extremamente importante, sempre respeitando a população local. Em Belo Horizonte, que é uma cidade onde muito da vida passa pela área central, ter um centro pulsante ajuda ainda mais a exercer a cidadania”.

Marcos Boffa, Diretor de Políticas de Turismo e Inovação da Belotur

Ele compara a Sapucaí com dois endereços famosos de São Paulo: a Rua Augusta, que também passou por um processo de redescoberta, ocupação e revitalização, e o Beco do Batman, que, por conta da arte de rua virou um importante ponto turístico da cidade.

Para a Belotur, a Rua Sapucaí já se tornou um ponto turístico de BH, atraindo principalmente o visitante de proximidade, que vem de outras partes da região metropolitana e também do interior de Minas.

Mas turistas de outros estados e até do exterior também já descobriram a rua, que fica a uma curta caminhada de locais que tradicionalmente recebem eventos, como o Palácio das Artes. Depois de feiras, palestras, cursos e reuniões, a Sapucaí chama os participantes para a sua vida noturna.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • Não pode se esquecer de perguntar ao moradores do entorno da Sapucaí os reflexos desse mirante, eu mesmo moro na Francisco Sales esquina com a Sapucaí e digo que os frequentadores do mirante são sem educação gritam de madrugada cantam urinam na porta do prédio sujam a rua toda não respeitam os moradores os prédios da esquina tem quase 200 apartamentos e muitos idosos que não conseguem dormir e estudantes e trabalhadores que se sentem incomodados com o barulho excessivo não se respeita a lei do silêncio eu acho que deveria se pensar mais em quem paga um iptu caríssimo a mais de 40 anos e não tem seus direitos respeitados.

    • Oi, Paulo.

      Olha só, acho que fomos vizinhos - eu morei exatamente nesse prédio, por alguns anos. :) Vi de perto o renascimento da Sapucaí, com o surgimento de alguns bares, como o Dorsê e a Benfeitoria, e a redescoberta da rua.

      Como ex-morador, acho que tudo isso é benéfico, mas, claro, tem seu lado negativo e que precisa ser encarado e resolvido - isso foi, inclusive, levantado na reportagem. É preciso que a prefeitura crie uma estrutura básica, como banheiros, e que também se comprometa a recolher o lixo de forma frequente. É triste ver a quantidade de lixo que se acumula naquela área abaixo da Sapucaí, atrás do metrô e do Museu de Artes e Ofícios.

      Também é preciso que todos os grupos que usam o espaço façam trabalhos de conscientização, para que as pessoas não deixem lixo e respeitem os moradores. E como o próprio CURA destacou, é preciso ver se está acontecendo um processo de gentrificação. A prefeitura precisa controlar o preço do IPTU e ficar atenta para variações exageradas nos aluguéis. Conversei com alguns conhecidos que ainda moram na Sapucaí e com antigos vizinhos e parece que o preço dos aluguéis não aumentou acima da média, mas isso tem que ser investigado e controlado.

      O barulho sempre foi um problema grave do endereço, sobretudo pelo trem e pelo metrô e nos apartamentos de frente para a Sapucaí, mas é algo que também precisa de atenção de todos os envolvidos.

      Com conversa e trabalho a rua fica boa pra todo mundo. É o que eu espero, porque esse é, de fato, um cantinho especial de BH e um lugar que sempre adoro revisitar.

      Abraço e obrigado pelo comentário.

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Publicado por
Rafael Sette Câmara
Tags: Arte

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