A simpatia seletiva e as vítimas do terrorismo

O mundo se assustou no dia 13 de novembro. Um grupo de terroristas explodiu bombas, fuzilou pessoas e fez reféns em vários pontos de Paris, na França. Os mais violentos ataques no país desde a Segunda Guerra deixaram 137 mortos e 350 feridos.

A reação foi imediata, com o governo fechando fronteiras e adotando medidas rigorosas de segurança. A comunidade internacional condenou os ataques e políticos fizeram planos e promessas. Pessoas normais, como eu e você, também foram afetadas, mesmo que do outro lado do mundo. Mesmo que a partir da segurança de nossas casas. Trocamos fotos de perfil nas redes sociais, pedimos orações pela França e colocamos hashtags contra o terrorismo no topo dos assuntos mais falados no mundo.

Naquela noite, governos de vários países iluminaram seus cartões-postais com o azul, o branco e o vermelho da bandeira da França. No Brasil, Cristo Redentor, Maracanã e Palácio do Planalto ganharam as cores francesas como gesto de solidariedade. A mesma coisa ocorreu em março deste ano, mas com as cores da bandeira da Bélgica, por conta dos ataques terroristas que deixaram 35 mortos.

Em casos assim, não sou do time que condena a troca da foto de perfil no Facebook ou a hashtag do momento. Num mundo em que se vive online, em que as fronteiras diminuíram e todos estão mais próximos, pequenas ações são sim sinais de empatia. São provas de que somos capazes de sentir a dor dos outros, de nos colocarmos por alguns segundos na pele de quem sofreu com os ataques. Ao pensarmos “poderia ter sido comigo”, sentimos dor.

Mas é inegável que mídia, governos e mesmo pessoas comuns têm uma simpatia seletiva com vítimas do terrorismo. Se sofremos pelos franceses e belgas, quase não falamos dos outros mortos. E os outros são maioria. “O triste é não ter feito a mesma homenagem ao Líbano, depois do recente atentado em Beirute, apesar do Brasil ter sete milhões de descendentes de libaneses”, escreveu o jornalista Guga Chacra, colunista do jornal O Estado de São Paulo.

Arte do Cinismo Ilustrado mostra as reações das pessoas quando uma tragédia ocorre 

Segundo dados do Global Terrorism Index, ocorreram mais de 61 mil ataques terroristas nos últimos 16 anos, eventos que deixaram 140 mil mortos. E 78% dessas mortes ocorreram em cinco países, nenhum deles parte do Ocidente. Iraque, Afeganistão, Nigéria, Paquistão, Síria, Índia, Iêmen, Somália, Líbia e Tailândia são os 10 países que mais perderam vidas por conta do terrorismo.

Ao analisar os ataques realizados desde 2000, o mesmo estudo mostra que apenas 2,6% das mortes em atentados terroristas ocorreram no Ocidente. E se retiramos da equação o 11 de Setembro, apenas 0,5% das mortes foram em países ocidentais, aqui entendidos como Estados Unidos, Canadá, Austrália e Europa Ocidental. Em 2015, a Nigéria foi muito mais afetada pelo terrorismo que os Estados Unidos naquele assustador setembro de 2001.

Veja também: Você se considera ocidental?

Isso significa que a cada mil mortes causadas por ataques terroristas, cinco ocorrem no Ocidente. Cinco. A dor das outras 995 é sentida por famílias na África, no Oriente Médio e na Ásia. Se colocarmos novamente o 11 de setembro na conta, temos, desde 2000, 26 mortos em países ocidentais a cada mil perdas causadas no mundo por conta do terrorismo.  Na realidade, o número de mortos e ataques terroristas na Europa já foi até maior, principalmente no fim dos anos 1970 e começo dos 1980, época em que grupos terroristas europeus – como o IRA e o ETA – causaram milhares de mortes no Velho Continente.

Países mais afetados pelo terrorismo, segundo estudos do Vision of Humanity

O terrorismo na mídia

Pense rápido: de quantos atentatos terroristas você se lembra no mês passado? Sim, semanas atrás. Bagdá, 6 de março: 47 mortos. Costa do Marfim, 13 de março: 22 mortos. Turquia, 15 de março: 35 mortos. Paquistão, 27 de março: 65 mortos. Apesar de todos esses ataques no mesmo mês, as atenções da mídia se concentraram nos atentados de Bruxelas, no dia 22 de março, que deixaram 35 mortos. Só que um grande ataque, com dezenas de mortos, ocorre no mundo a cada 15 dias.

A revista norte-americana The Nation resolveu estudar a cobertura midiática de atentados terroristas. A reportagem comparou a cobertura feita pela mídia nos atentados de Beirute (12 de novembro), Badgá (13 de novembro) e Paris, todos organizados pelo Estado Islâmico. No dia do ataque em Bagdá, a internet recebeu 393 artigos, enquanto 1292 textos jornalísticos foram escritos no dia dos atentados no Líbano. Enquanto isso, apenas no dia dos ataques de Paris a mídia escreveu mais de 21 mil artigos sobre o assunto.

O número de mortos de determinado ataque não explica o tamanho da cobertura, já que um atentado sem mortos em Oignies, na França, teve 10 vezes mais cobertura midiática que os ataques do Iêmen, onde quase 40 pessoas morreram. A mesma coisa aconteceu com outro ataque sem vítimas, em Londres.

Imagem: Pixabay

A raridade do fato, usada como critério de noticiabilidade jornalística, também não serve para justificar as coberturas. A França sofreu cinco atentados terroristas em 2015. No mesmo período, o Líbano sofreu dois. Ainda assim, a cobertura midiática dos ataques franceses foi 20 vezes maior.  E você ouviu falar do ataque em N’Djamena, capital do Chade? Foi o primeiro no país em anos, deixou 27 mortos, mas recebeu 40 vezes menos atenção da mídia que os ataques em Paris. A mesma coisa aconteceu com ataques na Bósnia e na Macedônia, dentro da Europa. 

O tipo de cobertura também varia. Notícias sobre atentados no Oriente Médio se concentram em fatos básicos, como número de mortos, de feridos, se os terroristas foram presos, se foi um ataque suicida e qual a organização por trás do atentado. Já a cobertura midiática feita após ataques em países ocidentais é bem mais humana. Conhecemos as histórias das vítimas, vemos suas fotos e pensamos em suas famílias. Os mortos na França são seres humanos. Poderiam ser eu ou você. Os mortos no Oriente Médio são estatística, um número que você lê enquanto prepara o café.

Simpatia seletiva: as consequências.

O ISIS, ou Estado Islâmico, mata muito mais africanos / muçulmanos do que pessoas de outros continentes e religiões. No entanto, a cobertura midiática acaba criando a sensação de que as principais vítimas do ISIS são americanos e europeus, o que ajuda a alimentar a perigosa ideia do nós contra eles.  A perigosa ideia do Ocidente x Islã, com seus 1.6 bilhão de fiéis, gente que não tem nada a ver com os atos de radicais. Gente que sofre, morre e luta contra o Estado Islâmico.

Veja também: Você tem medo de muçulmano?

Precisamos aceitar diferenças e aprender a respeitar o próximo, mesmo quando o próximo é de uma cultura completamente diferente e com a qual não concordamos. Para isso, é preciso lutar contra preconceitos e abrir a cabeça, algo tão útil quando viajamos para países diferentes do nosso, mas também fundamental no dia a dia.

Eu sei que é mais fácil sentir empatia por lugares que a gente conhece, por pessoas que julgamos parecidas com a gente. Mas sei também que é impossível se importar com algo se não soubermos que aquilo ocorreu. “A falta de cobertura jornalística adequada nos casos de terrorismo em países não ocidentais faz com que as pessoas sejam incapazes de se importar com as vítimas desses países”, conclui o The Nation. E isso gera preconceitos, medo e reforça uma perigosa história única.

*imagem destacada: Refugiados sírios, do Shutterstock

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • Acredito que não se trata de preconceito, mas de seletividade.
    Pois, além da proximidade e identificação com as vítimas em lugares como a europa, as pessoas sabem que poderiam estar, ou ter um ente querido, lá naquele momento. Ademais, cabe lembrar que existem muito mais leitores interessados sobre o que acontece na europa do que em algum lugar remoto da áfrica ou asia.

  • Hoje estava pensando nessa comoção seletiva, na ampla cobertura que a mídia do Brasil dá aos ataques terroristas na Europa e EUA, e como faz pouco caso dos ataques terroristas em outros países. Vendo o mapa que você colocou, a impressão que dá, é que se acontecesse aqui (não estou de forma alguma desejando isso, assim como não desejo pra lugar algum) seríamos tratado com um tanto de indiferença pela mídia internacional... É triste perceber que a vida de uns "vale mais" que de outros. Belo texto, parabéns!! Virou referência pra mim!!

    • Mas seríamos tratados com indiferença sim, Paola. É claro que não no nível da África, que infelizmente é indiferente pro mundo, ou do oriente médio. Mas tenho certeza que não teria o impacto que há em casos na Europa ou nos Estados Unidos.

      Não precisamos ir muito longe não: já tivemos histórico de terrorismo em países sul-americanos, como Peru e Colômbia. Poucos se lembram disso.

      Abraço e obrigado pelo comentário.

  • Boa reflexão, Rafa. Muitas vezes também me pergunto a mesma coisa; por que um atentado na Europa e suas mortes ¨valem¨mais do que um na África ou no Oriente Médio? Desde que o mundo é mundo, o poder e o dinheiro são os que mandam. Por isso acho que a única coisa que podemos fazer, o que não é pouco, é isso que você sugere; abrir a cabeça e julgar por nós mesmos os fatos e não tomar partido sem conhecimento. Afinal de contas, todos somos seres humanos valiosos. Abraços!

    • Sim, Lucila. É fundamental coletar todas as informações possíveis, de várias fontes, mas no final temos que julgar a questão e tomar posição por nós mesmos.

      Abraço.

  • Muito bom seu texto, Rafael. Porém acho que esse é um problema mais antigo. O Fanon já disse que a segunda guerra se tornou o símbolo do horror porque aconteceu na Europa, com europeus exterminando europeus. Que genocídios na África não despertavam a mesma reação. Aliás, Europa ocidental, como você disse sobre a Bósnia e a Macedônia. Como disse Hitler "quem se lembra dos armênios?".

    Adorei o mapa que você postou porque acho que muita gente tem essa exata reação quando lê sobre um ataque na África ou no oriente médio. Acha que eles são diferentes, "tribais", "primitivos". E a gente quer acreditar que somos iguaizinhos a Europa, ocidentais, civilizados. Nossos jornais frequentemente nem falam do que acontece aqui na América do sul mesmo, quanto mais na África e na Ásia.

    • Como sempre, Júlia, seu comentário rende outros textos sobre o assunto. :) Vou pensar sobre isso nos próximos dias. Acho que dá para continuar a reflexão nessa linha.

      Abraço e obrigado pelo comentário.

  • Mais um texto perfeito!
    Não tenho conteúdo a adicionar, só elogiar mesmo porque as reflexões sempre são ótimas e sensatas!

  • Ótima reflexão. O blog de vocês vale muito a pena :)
    As usual, um texto pra se compartilhar.

    Parabéns por todo o trabalho do 360 meridianos e um enorme valeu por esse texto

  • Rafa, sou super fã do blog de vocês e devo dizer que esse foi o melhor texto que já li aqui! Obrigada por colocar "meus" pensamentos em palavras. Perfeito!

  • Sensacional, Rafa!

    Com a divulgação daquela mensagem do Estado Islâmico ameaçando o Brasil, se iniciou uma conversa ontem entre mim e uns colegas e eu estava falando exatamente disso.

    Disseram que eu estava exagerando, aí citei o Boko Haram, aquele grupo extremista da Nigéria, e ninguém se lembrava dele. Comentei daquele sequestro de centenas de meninas, que faz apenas dois anos, e ninguém conseguiu recordar. No começo do ano passado, o grupo praticamente dizimou uma cidade chamada Baga, deixando MILHARES de desaparecidos mas, claro, ninguém ouviu falar. Tinha lido uma reportagem na época que dizia que havia até corpos apodrecendo nas ruas.

    Muito bom ver um texto reflexivo como o seu em um blog com alcance dos 360. Fico na esperança de que nos leve a, pelo menos, pensar a respeito.

    Abraços!

    • Exato, Gê! Inclusive, eu mesmo deveria ter falado do Boko Haram no texto. Talvez seja o melhor exemplo.

      Muito obrigado pelo comentário!

      Abraço.

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Publicado por
Rafael Sette Câmara
Tags: Reflexões

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