O transporte ferroviário no Brasil e por que você não vai viajar de trem tão cedo

Em setembro de 1907, João do Rio embarcou na Estação Central do Brasil. O escritor estava de malas prontas para Minas Gerais. Embora tenha partido vazio, logo o trem lotou. “Havia criaturas até no tejadilho. Como se arranjavam eles? Agarrados em qualquer lugar, rindo, gritando, faziam daquele trem um inferno de riso, de exclamações, de barulhos”. O relato dele causa estranhamento — e não só pela imagem de um trem brasileiro com passageiros até no teto. Mais de um século depois, o transporte ferroviário no Brasil perdeu protagonismo. E há, em 2020, menos linhas de trens funcionais que no começo do século passado.

Por aqui, a história do transporte ferroviário começou no Império. Com apoio de Dom Pedro II e encabeçada por  Irineu Evangelista de Sousa — O Barão de Mauá — a primeira ferrovia do Brasil foi inaugurada em 1854. A linha tinha menos de 15 quilômetros e ligava o porto do Rio de Janeiro ao município de Raiz da Serra.

Nos anos seguintes vieram mais nove ferrovias, essas sim relevantes. E em 1922, no centenário da Independência, o Brasil tinha 29 mil quilômetros de linhas de ferro. “Foi criada toda uma rede. Em 1930 atingimos trinta mil quilômetros de ferrovias, abrangendo toda a região litorânea, principalmente no sul e no sudeste, visando os processos exportadores do país. Isso tinha grande importância comercial e internacional para o Brasil”, explica Marcus Quintella, Diretor do Centro de Estudos em Transportes, Logística e Mobilidade Urbana da Fundação Getúlio Vargas, com quem conversei por telefone.

Lançamento da pedra fundamental da Estrada de Ferro Mauá, Rio de Janeiro, em 1852 (autor desconhecido)

A situação começou a mudar em 1926, quando Washington Luís foi eleito Presidente da República, com o lema governar é abrir estradas. “É mais fácil fazer rodovias. Não demora tanto tempo, pode ser feito dentro do mandato dos governos, não precisa daquela continuidade administrativa. Então era tudo eminentemente politico”, explica Quintella. Mesmo assim, o sistema ferroviário brasileiro seguiu crescendo. E na década de 1950 alcançou seu tamanho máximo: 37 mil quilômetros.

E veio a queda. Hoje, o Brasil tem oficialmente 29 mil quilômetros de ferrovias. Sim, o mesmo tamanho de um século atrás. Como comparação, o pesquisador lembra que os Estados Unidos têm 220 mil; a China tem 192 mil. A Índia tem 68 mil e até a Argentina, que é três vezes menor que o Brasil, tem mais linhas de ferro: são 37 mil quilômetros.

Segundo Marcus Quintella, a comparação fica ainda mais desvantajosa pra gente quando pensamos na linhas brasileiras que existem de fato. Ou seja, que estão atualmente em condições de operação. “Em termos úteis, operacionais, há fontes que dizem que estamos trabalhando na faixa de apenas 12 mil quilômetros. Então temos 18 mil quilômetros de ferrovias inoperantes, subutilizadas ou abandonadas no país. Isso é gravíssimo”, diz ele.

O transporte ferroviário de passageiros no Brasil

O relato do João do Rio passa longe de ser o único sobre as viagens de trem que ficaram no passado. Carlos Drummond de Andrade, ao narrar uma viagem para a cidade histórica de Sabará, falou das igrejas atrás daquele morro, com vergonha do trem.

E em 1964, Adoniran Barbosa deixou claro que não podia perder o trem. Porque outro, só amanhã de manhã. O Trem das Onze, imortalizado por Adoniran, existiu. Partia da região central de São Paulo e seguia para Guarulhos, com uma parada em Jaçanã. A linha foi inaugurada em 1894 e deixou de circular nos anos 1960.

Embora o primeiro golpe ao transporte ferroviário tenha ocorrido no governo Washington Luís, até os anos 1990 ainda sobreviviam algumas linhas interestaduais de passageiros. O fim veio mais ou menos junto com o Programa Nacional de Desestatização, que dividiu as linhas, responsáveis por um prejuízo milionário ao Estado, e as entregou para a iniciativa privada.

Com isso, aos poucos as linhas de passageiros foram desativadas. Foi o caso do Trem de Prata, que ligava as estações Barão de Mauá, no Rio de Janeiro, e Barra Funda, em São Paulo. A última viagem ocorreu em novembro de 1998. Já o Vera Cruz, que ligava Rio e Belo Horizonte, passando por várias cidades ao longo de 640 quilômetros, morreu em 1990.

Carlos Latuff ( CC BY-SA 3.0)

Hoje, viajar de trem no Brasil é quase sempre um passeio turístico. É o caso das linhas entre Mariana e Ouro Preto e Tiradentes e São João del-Rei, em Minas Gerais. Ou entre Curitiba e Morretes, no Paraná, todos percursos pequenos. Grandes mesmo só as duas linhas ligadas à mineradora Vale.

No norte do país funciona a Estrada de Ferro Carajás, atualmente a maior linha de passageiros do Brasil e que liga São Luís, no Maranhão, a Parauapebas, no Pará. Apesar dos 900 quilômetros, a ferrovia transporta menos de dois mil passageiros por dia. Já a outra linha de passageiros gerenciada pela mineradora é a única entre duas capitais brasileiras: liga Belo Horizonte e Vitória.

Veja também:
Trem entre Ouro Preto e Mariana — como fazer o passeio
Passeio de trem em Curitiba — bate-volta até Morretes

Trem turístico entre Curitiba e Morretes

Marcus Quintella explica que as linhas de passageiros foram abandonadas porque não davam lucro. “Não há sustentação. No mundo inteiro, pouquíssimas linhas de longa distância são superavitárias. Trens de alta velocidade têm quase sempre algum tipo de subsídio governamental. O transporte de curta e média distância então tem muita dificuldade de se manter”, diz.

Segundo o pesquisador, a situação no Brasil era ainda mais delicada porque nunca houve linhas exclusivas para os passageiros, que tinham que conviver com a carga. “Você saía do Rio para São Paulo e parava no meio do caminho sempre que tinham trens noturnos de carga, porque a preferência era da carga. E ficava esperando os trens passarem. Com isso, às vezes o trajeto levava 11 horas. Essas linhas foram bancadas pelo governo por muito tempo, mas era uma coisa romântica, quase turística, porque não tinha como competir, não tinha como uma empresa privada assumir e conseguir resultados.”

E não adianta sonhar com viagens de trem no Brasil nas próximas décadas, já que isso só seria possível com a existência de linhas exclusivas para passageiros. E, segundo o pesquisador, o gargalo no setor ferroviário do país é tão grande, os problemas são tão complexos, que o Brasil vai ter que lidar com muitas outras prioridades antes de conseguir investir no transporte de pessoas. Isso porque a ausência dos trens tem um impacto bem maior do que nas nossas viagens. Eles fazem falta mesmo é no transporte de carga.

É pouco provável que o Brasil tenha, nos próximos 50 anos, uma rede de trens exclusivamente de passageiros, de média e alta velocidade. Depende de investimentos altíssimos. Olha o caso do trem-bala entre Rio e São Paulo: transpor a Serra das Araras envolve um custo de obras de arte, entre túneis, viadutos, pontes, tudo muito caro. E o custo da tarifa não sustentaria o investimento de qualquer iniciativa privada. Por isso, só governos, como acontece na Alemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos, bancam essas linhas.

Marcus Quintella – Diretor do Centro de Estudos FGV TRANSPORTES

Trem turístico entre Ouro Preto e Mariana

O sistema ferroviário brasileiro e o transporte de carga

Você vai ao supermercado e compra um saco de arroz. Ou um pacote de leite, carne ou qualquer outra coisa. Não importa o que você tenha colocado no carrinho, é muito provável que a locomoção entre o produtor e você tenha sido feita por caminhoneiros.

Isso porque o transporte rodoviário representa 65% de toda a carga locomovida no Brasil. Os trilhos levam só 15%, mas com outro problema: a maior parte da carga transportada nas linhas de ferro envolve as mineradoras, que levam sua produção aos portos. “Essas ferrovias transportam predominantemente minérios e carvão. Quase 80% são minérios, o agronegócio responde por 13%, 14%, apenas, da carga transportada nas ferrovias. Os contêineres muito menos. Não se transportam combustíveis, carga geral…”, diz Marcus Quintella.

Só que, embora os custos de implantação de ferrovias sejam mais elevados do que os de rodovias, o valor gasto para transportar cargas, principalmente em longas distâncias, é muito superior se feito pelas estradas. Segundo a Associação Brasileira de Indústria Ferroviária, o custo para transportar carga em rodovias pode ser até seis vezes maior do que em ferrovias. E isso tem um impacto para todo mundo — inclusive para você, consumidor. E, claro, para a competividade do Brasil no mercado internacional, já que os custos elevados para escoamento da produção encarecem o produto brasileiro.

Marcus Quintella destaca ainda os diversos gargalos logísticos, desde diferenças de bitola (a largura entre os trilhos) das linhas existentes, passagens dentro de cidades e até problemas regulatórios que impedem a integração da rede nacional. Em outras palavras: os poucos quilômetros de ferrovias que existem não conversam entre si.

O baixo uso do sistema ferroviário compromete o custo Brasil de um modo geral. A ferrovia tinha que ter um papel predominante, uma espinha dorsal do Brasil, transportando em longas distâncias. Hoje, o caminhão faz o papel do trem em longa distância, o que seria absurdo em qualquer país de dimensão continental como o Brasil.

Marcus Quintella – Diretor do Centro de Estudos FGV TRANSPORTES

 

Desde a redemocratização, diversos projetos prometeram ampliar e integrar o sistema ferroviário brasileiro. Segundo Quintella, nada deixou a pastinha das promessas. Um exemplo é a Ferrovia Norte-Sul, projetada em 1986 para ser a espinha dorsal do sistema ferroviário brasileiro. Se um dia ficar pronta, ela percorrerá mais de quatro mil quilômetros e ligará o Pará ao Rio Grande do Sul. Hoje, só um trecho entre o Maranhão e o Tocantins é operacional. Outros seguem em obras.

Construir a infraestrutura de transportes de um país não pode depender da iniciativa privada. A grande estruturação de um país, em qualquer lugar do mundo, vem do dinheiro público. Nenhuma iniciativa privada vai bancar um projeto que é estruturador, que vai levar 10 ou 20 anos pra gerar uma demanda e pagar os investimentos do capital. O investidor quer uma linha que seja superavitária.

Marcus Quintella – Diretor do Centro de Estudos FGV TRANSPORTES

No século 19, ainda no Império, o investimento em ferrovias era o único caminho possível. Como não existiam carros e caminhões, as linhas de ferro eram a modernidade, o investimento seguro para ligar o país. Mas, apesar dos bons resultados nesse período, e também nas primeiras décadas da República, construir ferrovias nunca foi fácil.

A linha que liga Curitiba e Morretes, no Paraná, hoje se tornou sinônimo de turismo. Mas ainda é usada no transporte de carga: é pela Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá que escoam 30% das mercadorias levadas para o porto paranaense.

Planejada quando o Brasil enfrentava a Guerra do Paraguai e tentava criar uma infraestrutura básica para ligar o interior ao litoral, a ferrovia nasceu polêmica. Foi preciso instalar linhas de ferro em 100 quilômetros de um trecho da Serra do Mar que é de acesso complicado e estava coberto pela Mata Atlântica. Tarefa dificílima, a ponto da construção da ferrovia ser considerada uma das grandes conquistas da engenharia brasileira no século 19.

A pedra fundamental foi colocada em junho de 1880, por Dom Pedro II, em Paranaguá. Cerca de quatro anos depois, a Princesa Isabel embarcou num vagão e seguiu até Curitiba, inaugurando oficialmente aquele que seria, nos anos seguintes, um ponto importantíssimo no desenvolvimento do Paraná.

Outro exemplo é a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, um projeto de 1870 e que tinha por objetivo encurtar a distância entre os países andinos e a Europa e os Estados Unidos, fazendo o transporte das mercadorias num conjunto de ferrovias e barcos, até Belém. Em 1875, José Coelho da Gama e Abreu, o Barão do Marajó, escreveu, enaltecendo o projeto:

Outra fonte de receita que se abre para a província do Grão-Pará, e que será a origem de uma grande alteração no comércio dos países banhados pelo Oceano Pacífico, é a linha férrea em construção, (…) facilitando a exportação e importação dos gêneros produzidos e consumidos por dois milhões e quinhentos mil habitantes.

José Coelho da Gama e Abreu, em Do Amazonas ao Sena, Nilo, Bósphoro e Danúbio. Apontamentos de Viagem

Apesar do otimismo do Barão, as duas primeiras tentativas de ligar os países andinos ao Atlântico, passando uma linha de ferro pela Amazônia, falharam. Incontáveis trabalhadores morreram durante as obras, tanto em acidentes quanto de doenças como a malária, o que garantiu à Madeira-Mamoré a fama de ferrovia da morte.

Autoridades em visita à Madeira-Mamoré, em 1910 (Coleção Dana Merrill / Tratamento dos negativos e diapositivos do Serviço de Documentação Textual e Iconografia – L3 Conservação de Acervos S/S Ltda. / Reprodução digital – Um Certo Olhar Imagens e Editora Ltda. / 2011)

A linha completa só seria inaugurada em 1912. Mas dois anos depois surgiu o Canal do Panamá, que encurtou as distâncias do mundo e tornou a Madeira-Mamoré pouco interessante economicamente. A desativação veio em 1972. Apesar do fracasso, a ferrovia ajudou no desenvolvimento de Rondônia e até na definição das fronteiras do Brasil com a Bolívia.

E o futuro das ferrovias?

Perguntei ao Marcus Quintella qual deveria ser o projeto do Brasil para o sistema de transportes. Para ele, é fundamental que exista uma “visão sistêmica da cadeia logística, de todas as origens e destinos, das demandas, de toda a situação integradora” (com os outros sistemas de transporte).

E é preciso pensar décadas a frente: “que tenha uma visão de 30, 40, 50 anos. Que seja bem executado tecnicamente, apartidário, apolítico. Viável economicamente, logicamente. O plano não pode ser modificado à mercê dos governantes que estão no poder. Isso é o que nunca deixou o país se desenvolver em transporte”.

Para saber mais sobre o tema

Trilhos do desenvolvimento: As ferrovias no crescimento da economia brasileira 1854-1913 (e-book)

O autor estuda o verdadeiro impacto dos investimentos ferroviários na economia brasileira na segunda metade do século XIX e início do século XX. Mostra como a ação do governo conseguiu viabilizar esses investimentos e como estes reduziram o custo do transporte e integraram mercados, gerando oportunidades para imigração e outros possíveis investimentos. Cresceu o PIB, retornos foram gerados, uma nova face do Brasil se mostrou possível. Um estudo impactante para quem quer entender como a economia do país caminhou e pode recuperar um pouco do atraso, ou, como a situação seria ainda pior se as ferrovias demorassem mais para operar. Também é possível imaginar que situação teríamos se o modelo não fosse tão desincentivado no início do século XX, substituido pelas rodovias. Saiba mais: https://amzn.to/2IyC1YV

História das ferrovias do Brasil: Ferrovias paulistas (e-book)

Em sua nova obra, História das ferrovias paulistas, segunda de uma série de dez denominada História das Ferrovias no Brasil, José Manoel Ferreira Gonçalves traça a memória da construção de linhas férreas no estado de São Paulo. Sem se lançar à tradicional melancolia nostálgica, antes o contrário, o autor desenvolve uma linha de raciocínio bastante precisa e chega, inclusive, a propor soluções em meio à hipérbole do sistema rodoviário no país. José Manoel não se prende à narrativa linear da história da malha ferroviária paulista, mas destaca os pontos cegos que, por vezes, deixaram de fazer parte da história oficial, como por exemplo que nem só de café viviam as ferrovias, mas acabavam por escoar também algodão, minérios, ferro, tecidos e até carga viva de bois. Saiba mais: https://amzn.to/3lLAkFz

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • Linda história. Meu Avô materno era ferroviário e minha família deve o sustento a isso nos anos 40, 50, 60 e 70. Ele trabalhou no auge do transporte ferroviário no Brasil, onde muitas cidades do interior surgiram em função das ferrovias e das estações de trem. Era o grande evento das cidades, como Balsa Nova, Piraquara e outras cidades no Paraná, quando o trem chegava e o comércio daquele local vivia seus momentos de euforia. Nas cidades maiores, como Curitiba, era a estação de trem que chegavam os imigrantes para uma vida totalmente nova na capital. Muitas histórias de famílias, de cidades e até de times de futebol se fundem pela existências das ferrovias no Brasil. Seria muito bom ouvir novamente o trem buzinando pelas ferrovias do nosso País.

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Publicado por
Rafael Sette Câmara

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