Em Minas, o tropeiro é quase um sinônimo para futebol

 

Nem pizza, nem cachorro-quente. Na Copa do Mundo de 2014, FIFA e patrocinadores tiveram que aceitar que o Mineirão, em Belo Horizonte, servisse também seu prato mais tradicional: o tropeiro. Feijão, arroz, couve, bacon, torresmo, pernil e, claro, um ovo frito formam não apenas um dos pratos favoritos dos mineiros, de domingo a domingo, mas a comida de estádio preferida nas bandas de cá.

Consumido há décadas nas arquibancadas, em Minas o tropeiro é quase um sinônimo para futebol. Não foram poucas as vezes que vi feijões voando durante uma comemoração de gol; foram raras as idas a estádios que não envolveram a iguaria – e de preferência com ovo de gema mole por cima de tudo.

Pedir um tropeiro num estádio de futebol tem seus desafios. O primeiro, óbvio, é carregar a comida arquibancada acima, sem derrubá-la e nem, acredite se quiser, ter o ovo roubado num momento de distração. Mas, passada essa fase, chega o momento mais especial: comer o pernil com um talher de plástico. A solução é simples, mas tem quem a evite, por educação ou medo de ser flagrado pelas câmeras de TV em momento tão impróprio – pegar o bife com as mãos e comê-lo assim mesmo, dentada por dentada.

Mineirão (Foto: Divulgação)

Certa vez, num jogo entre América e Cruzeiro, no Mineirão, vi um amigo comprar um tropeiro, voltar da fila feliz com a marmita, mas deixar o pernil cair no chão, ao tentar cortá-lo com o talher de plástico. Ele não teve dúvidas: apanhou a carne e tratou de comê-la mesmo assim, para a alegria de vários torcedores, que o saudaram pelo ato. “Não dá pra desperdiçar tropeiro”, disse um deles. Não dá mesmo (mas desse eu abriria mão).

Como o nome indica, o prato nasceu com os tropeiros – homens que guiavam animais pelas estradas de Minas Gerais, no período colonial. Durante as viagens, as opções de comida eram poucas. Por isso, eles precisaram criar uma receita que pudesse ser feita rapidamente e com ingredientes que não estragassem. No fim das contas, a história não é muito diferente da que levou ao desenvolvimento do arroz de carreteiro, prato típico do sul do país. A diferença é que, em Minas, o tropeiro deixou as estradas e entrou nos estádios.

Construído na década de 1960, o Mineirão viu o tropeiro ganhar espaço e fama aos poucos. Algumas fontes dizem que tudo começou em apenas dois bares, mas que o sucesso foi tanto que logo a iguaria passou a ser vendida em todo o estádio. Mas foi no bar ao lado do Portão 13 que o tropeiro ganhou sua fama máxima – e alguns ingredientes secretos, como o molho de tomate.

Tudo era servido num pratinho de plástico, ao lado da entrada do estádio. O sucesso foi tanto que, em 2005, os donos do bar resolveram abrir um restaurante no bairro Planalto, em Belo Horizonte. Quem já foi costuma celebrar o “verdadeiro tropeiro do Mineirão”.

O jornalista e fotógrafo Ismael dos Anjos, que escreve uma coluna aqui no 360 e frequenta o Mineirão há décadas, também tem suas histórias com o tropeiro. “Eu frequentava o portão 6, que era atrás do gol. Mas o tropeiro do portão 7A, que é aquela parte que ia pro meio do estádio, era muito melhor, porque tinha umas batatas fritas portuguesas. Então eu ia lá para comprar. Isso era tão institucionalizado que a grade do Mineirão, nesse ponto, era torta. Alguém abaulou a grade para você conseguir dobrar um prato de plástico, formando um U, o suficiente para ele passar. E esse bar deixava um funcionário especificamente para vender tropeiro na fila que se formava nessa grade, na divisão entre o 6 e o 7A”, contou ele.

Hoje, a administradora do Mineirão garante que de cada quatro torcedores que passam por lá, pelo menos um pede um tropeiro para chamar de seu. Em jogos de lotação máxima, mais de 15 mil tropeiros são vendidos – e isso contando só os bares que ficam dentro do estádio. Não falta quem chegue cedo e prefira comer do lado de fora, entre uma cerveja e outra. O dia e o horário do jogo também afetam as vendas: segundo a Minas Arena, jogos noturnos ou nas tardes de domingo registram um número maior de tropeiros vendidos.

Quando o Mineirão foi reaberto depois da reforma, pouco antes da Copa do Mundo, o tropeiro voltou diferente. Menor, mais caro e sem vários ingredientes – inclusive o ovo frito. Não demorou para que torcedores protestassem. Aos poucos o prato voltou ao normal e o retorno do zoiudo – o ovo – valeu até comemoração, mas só ocorreu em 2016, bem depois da Copa. Por exigência da Vigilância Sanitária, os bares tiveram que fazer adequações para voltar a oferecer o tropeiro completo.

Tropeiro de um bar da rua Pitangui, na frente do Independência

No Independência, estádio que frequento praticamente toda semana e onde pisei pela primeira vez ainda criança, o tropeiro é uma tradição do lado de fora, nos bares da rua Pitangui. O preço varia, mas em geral fica entre 10 e 15 reais, sendo que o mais barato é o pequeno – o grande enche a pança do mais faminto dos torcedores.

A gourmetização dos estádios alterou o perfil das arquibancadas e em vários sentidos a mudança foi para pior. Ainda bem que o Mineirão não obriga seus torcedores a comerem só pizza congelada e cachorro-quente sem graça. Teria sido ainda mais difícil aguentar o 7 a 1.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • Tropeirão do Mineirão... como não amar? Eu deixava de almoçar só pra dar conta de comer um desses lá dentro nos dias de futebol rrsrs. E é bom demais ver essa iguaria mineira sendo divulgada pro Brasil todo (e pro mundo) pelo site de vocês. Valeu, galera.

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Rafael Sette Câmara

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