Visconde Benalcanfor: livros e viagens em Portugal no século 19

Dentro de um barco que cortava lentamente o Mar Mediterrâneo, Ricardo Guimarães sentiu saudade de casa. Aquela viagem tinha começado como todas as outras, mas seguia para um destino bem diferente dos anteriores: o misterioso Oriente. E os dias no mar, “uma solidão imensa e sem limites onde se não avista durante semanas e meses inteiros uma única vela a alvejar ao longe”, eram um prenúncio de que aquela seria uma experiência especial. 

Ricardo Augusto Pereira Guimarães nasceu no Porto, em 1830. Morreu 59 anos mais tarde, época em que já era conhecido por outro nome. Ou, para ser mais preciso, por um título: Visconde de Benalcanfor. Seja no período como plebeu (sem sangue azul, mas de uma família influente), seja já na época de nobreza, ele foi um dos mais importantes nomes da literatura e do jornalismo portugueses na segunda metade do século 19. 

Veja também: 

A vida e a literatura do Visconde Benalcanfor

Guimarães foi contemporâneo de outros nomes importantes das Letras portuguesas. Camilo Castelo Branco, célebre autor de Memórias do Cárcere, era cinco anos mais velho que ele. Júlio César Machado, outro nome importante da literatura portuguesa, era cinco anos mais novo. Ricardo Guimarães fundou um jornal com Castelo Branco, chamado O Portuense. E foi amigo de César Machado, com quem trocou correspondências, dedicatórias e afagos. 

Filho de um comerciante rico e que tinha sido várias vezes vereador do Porto, teve como irmãos pessoas que mais tarde se destacaram como brasileiros. Não no sentido atual, de adjetivo pátrio, mas no que era mais comum em meados do século 19: o de um português que migrou para tentar enriquecer no Brasil. Dois dos irmãos do escritor viveram no Brasil até a morte. E Ricardo, apesar de não se mudar para o Novo Mundo, teve também uma vida cheia de viagens. 

Estudou direito em Coimbra, onde participou de movimentos políticos importantes de sua época, como a Revolução Maria da Fonte, que em 1846 se levantou contra o governo nacional. Foi também militar por um breve período, tendo se alistado no Batalhão Acadêmico, tropa que era formada por estudantes. 

Completou o curso de direito, mas se dedicou mesmo foi ao jornalismo. E, aos poucos, à literatura. Foi nessa época que fundou O Portuense. Logo depois, o escritor se mudou para Lisboa e passou a ser colaborador de veículos como Arauto, Civilização, Revolução de Setembro e Revista Contemporânea. Em 1858, se casou com Maria Madalena Paes Guerreiro de Sande Salema, a quem dedicou alguns de seus livros.

Escrevia e publicava num ritmo alucinante, como testemunhou seu amigo Júlio César Machado: “O Visconde de Benalcanfor não deixa passar um dia sem escrever; não deixa passar dia em que um artigo seu não veja a luz em algum jornal de Lisboa”, escreveu o autor de Dois Pescadores de Leça da Palmeira, obra que faz parte da biblioteca Grandes Viajantes

Foi eleito deputado em 1860 e reeleito alguns anos depois. Da experiência nasceu o livro Narrativas e Episódios da Vida Política e Parlamentar. Outra obra com fundo político é Duas Palavras acerca da Revolução de Espanha, sobre a Revolução de 1868 no país vizinho, que destronou a Rainha Isabel II. 

De Lisboa ao Cairo – Cenas de Viagem

Também em 1868, Ricardo Guimarães foi nomeado cônsul em Macau, na época um território português, e partiu para uma longa viagem ao Oriente – ele já tinha sido deputado por Damão, colônia portuguesa na Índia. Desistiu do emprego antes mesmo de chegar ao posto de trabalho, por problemas de saúde, e retornou para casa.

A aventura rendeu uma série de reportagens para o jornal O Comércio do Porto. Em 1876, essas crônicas foram reunidas e reeditadas em dois livros: De Lisboa ao Cairo – Cenas de Viagem, e Na Itália. Outros livros do escritor são Viena e a Exposição; Impressões de Viagem: Cádis, Gibraltar; Paris e Londres; Realidades e Fantasmas; e Leituras de Verão. 

Em 1871, Ricardo Pereira Guimarães abandonou a vida política e se entregou definitivamente à literatura. Essa foi a década de ouro das letras em Portugal, período das conferências no Cassino Lisbonense e da chamada Geração de 70, que reinventou a literatura portuguesa e introduziu o realismo. Foi também a década mais criativa de Ricardo Guimarães, mas a maior parte de seus textos, escritos para jornais, se perdeu. 

O escritor publicou ensaios, memórias, folhetins e crônicas. E, claro, narrativas de viagem, obras que relatam o nascimento e a expansão do turismo. “Pomo-nos a caminho para Capri, onde há cinco ou seis hotéis razoáveis, e escolhemos o de Tibério (…) Camas limpas, peixe fresco e saboroso, vinho leve de Velletri, sorrisos afáveis”, escreveu o Visconde em Na Itália, um trecho que deixa evidente que ele não apenas contava o que via. Também se preocupava em produzir pequenos guias de viagem para outros turistas. 

Foi eleito para a Academia Real das Ciências de Lisboa – correspondente e precursora da Academia Brasileira de Letras. E foi naquela mesma década que Ricardo Augusto Pereira Guimarães mudou de nome, virando o Primeiro Visconde Benalcanfor, título criado pelo Rei D. Luís I e concedido ao escritor em 1871. 

O Visconde de Benalcanfor mantinha, mesmo que à distância, amizade com um importante nome da literatura brasileira: José de Alencar, autor de O Guarani, Lucíola e Iracema. Como conta Marcelo Peloggio, num artigo de 2004, Alencar enviou ao Visconde o livro O Sertanejo. Em troca, ganhou De Lisboa ao Cairo e Na Itália. O Visconde chamou Alencar de “uma das glórias da literatura e da tribuna brasileiras”, ajudando a aumentar a receptividade ao autor em Portugal. Alencar retribuiu, dizendo que o Visconde era uma das “glórias mais legítimas da terra ilustre”. 

Em 1889, pouco depois de comemorar 59 anos, o Visconde Benalcanfor morreu em sua casa, em Lisboa. Foi enterrado no Cemitério dos Prazeres, na freguesia de Estrela, onde também descansam outros nomes da cena literária portuguesa daquele finzinho dos oitocentos.  

Andaluzia e Malta, o livro do mês do Grandes Viajantes

Andaluzia e Malta, o livro de abril do Grandes Viajantes, é a primeira edição separada desses textos feita em formato de livro. Envolve os capítulos iniciais de um livro de viagem maior e nomeado “De Lisboa ao Cairo”. Embora cite a capital portuguesa no título, Ricardo Guimarães começa sua narrativa já da estrada, na Espanha. E mergulha na Andaluzia, com destaque para cidades como Córdoba, Sevilha e Cádis. Depois, passa ainda por Gibraltar, até hoje um território britânico, e embarca numa viagem pelo mar Mediterrâneo, com destino a Malta.

Baseamos a edição do Grandes Viajantes nos textos originais, fazendo a adaptação para as regras gramaticais vigentes. A edição conta ainda com material de apoio, notas explicativos e uma biografia do autor. A capa é outra atração deste livro: foi ilustrada pela artista Carol Merlo, exclusivamente para o clube. Além do livro digital, todos os membros do Grandes Viajantes recebem também a ilustração em formato de pôster, fundo de tela e cartão-postal.

Quer receber o livro? Entre pro clube e receba na hora, ao longo de todo o mês de abril de 2021. Após está data também será possível receber o livro, mas fazendo parte da categoria Leitores, que dá acesso a toda a biblioteca Grandes Viajantes. Saiba mais aqui.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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