“Tarra. Você disse tarra“.
“Não disse, coisa nenhuma. Disse estava. ES-TA-VA”.
A polêmica, levantada por um amigo de uma tia, se estendeu por vários dias na minha família. Foi só a guarda baixar e o policiamento dar uma trégua que a palavra voltou a aparecer. “Eu tarra fazendo não sei quê”, “Ele tarra indo não sei aonde”. Em quase 30 anos de convivência, eu nunca tinha me dado conta do contínuo uso do verbo tarrar entre minha mãe, avós e tios. Depois do alerta do amigo, foi uma prima, 12 anos mais nova que eu, que passou a dar o grito sempre que a palavra aparecia, inocente, no meio de uma frase.
Eu nasci em Belo Horizonte, mas tenho uma conexão forte com o norte do estado. A cidade da minha mãe, Brasília de Minas, foi o cenário de quase todas as minhas férias escolares até que meus avós, realizando um sonho antigo e para ficar mais próximos dos filhos e netos, foram viver em um sítio a uma hora e meia de casa. Antes disso, sempre que acabavam as aulas, a gente montava no carro e enfrentávamos sete horas de estrada até a pequena cidade na bacia do São Francisco.
Para referência, a gente costuma dizer que Brasilinha fica perto de Monte Claros. Para mim, fica longe de tudo. Quando chegamos a Montes Claros, ainda faltam duas horas e meia de chão até que o canteiro central adornado com palmeiras apareça pelas janelas do carro. Mas uma vez ali, a menina criada no oitavo andar podia brincar na rua, fazer expedições sozinha a bairros vizinhos e escalar muros e árvores para tirar fruta do pé. Brasília de Minas era, para mim, um mundo completamente diferente e que funcionava com suas próprias regras.
Toda cidadezinha tem sua igreja
Uma dessas regras dizia que era sempre preciso buscar o leite. Lá nos anos 1990, o leite longa vida ainda não tinha encontrado seu caminho até as mesas locais. Então, a cada poucos dias, eu e minha prima levávamos um galão até a casa de um conhecido e voltávamos com ele cheio de leite fresco que seria usado no preparo das roscas e biscoitos da minha avó, itens mais importantes no café da tarde que o popular pão francês. Outra regra era que nossas identidades eram determinadas pela ascendência. Ali, antes de ser Natália, eu era “a menina de Raquel” ou “A neta de Zuleica e Messias”, e essas informações pareciam bastar para situar-me na complexa teia social de um lugar onde todos se conhecem.
O transporte era muitas vezes feito de carroça ou cavalo, o queijo era comprado direto do produtor, todo mundo tinha uma roça para onde ir no fim de semana e não era raro ver vivas as galinhas que mais tarde terminariam no seu prato. Naquela época, a cidade parecia, de alguma forma, parada num tempo de vida simples, sem tanta comida embalada a vácuo e domínio de multinacionais nas prateleiras do supermercado. Mas a verdade é que a cidade se transformava a seu ritmo. Um ritmo diferente da frenética vida das metrópoles.
Em Brasília de Minas, a rivalidade entre Atlético e Cruzeiro não chega nem perto da disputa entre Bramoc e Jacarezinho, as duas escolas de samba locais. Cada um tinha a sua e, quando se aproximava o carnaval – o mais tradicional da região – a cidade se rachava em duas ao ponto do fanatismo. Minha avó ajudava a organizar os desfiles da Bramoc e eu saí umas duas vezes no bloco das crianças – como arlequim e palhaço -, mas meu sonho era ser porta-bandeira mirim. Nunca cheguei a isso: antes que eu tivesse idade, o carnaval acabou cancelado por decisões políticas equivocadas e só foi retomado mais de uma década mais tarde.
Assim como todos os seus sete irmãos, minha mãe saiu de lá aos 14 anos para estudar em BH e ali se estabeleceu. A maior parte do sotaque já se perdeu, mas costuma reaparecer quando a gente se reúne, assim como as expressões regionais típicas que já foram esquecidas no dia a dia. Eu cresci entre os dois dialetos: o da capital e o nortenho, e me dá graça ver como eu posso mudar de um para o outro dependendo do contexto no qual eu falo. Passar muito tempo em Brasília de Minas ou entre as pessoas dali é ganhar uma musicalidade mais próxima da baiana em minhas frases. E palavras como “enfuzado”, “escarrerado” e “invicioneira” fazem parte do meu vocabulário dependendo de quem é meu interlocutor.
Quando meus avós se mudaram para mais perto de Belo Horizonte, os costumes do norte de Minas vieram com eles. Fiquei anos sem voltar em Brasília de Minas. Só quando meu avô faleceu e minha avó voltou a viver ali é que eu regressei e pude reviver as memórias de infância. Mas mesmo com tantos anos longe, comida de vó nunca perdeu o gostinho do coentro. Nunca faltou um saco de pequi na geladeira e eu tive que me acostumar com ele, porque, por mais que você tente separá-lo do arroz ou da carne, o gosto impregna qualquer outra comida que esteja a menos de um quilômetro de distância. Nunca encontrei um picolé melhor e mais refrescante que o de tamarindo ou um almoço como carne de sol com arroz e feijão. Sou de muitas partes, mas carrego um pouco do cerrado sempre comigo.
Foto destacada: Shutterstock
Maravilhoso, sensível, Natália! Também amo transitar pela nossa língua…Fui colega do seu tio Roger, morei muitos anos na Juca Flávio, guardo na lembrança a elegância e educação dos seus avós…
Lindo, lindo, lindo! Maravilhoso texto. Sou apaixonada por tudo que descreveu. Foi como rever minha cidade nos anos 90. Parabéns, texto perfeito. Fiquei muito emocionada, pois minha infância foi de muitos folguedos aqui em Brasilinha também.
Por um instante senti como se eu estivesse escrevendo esse texto, principalmente o comecinho onde vc descrevia as férias da escola. Eu tinha 6 anos a primeira vez que fui com meus pais e minhas irmãs… hoje tenho 46 e me emocionei com as lembranças. Com a diferença que nós íamos de ônibus de São Paulo, um dia de viagem na época.
Que texto maravilhoso, Naty. Me sinto bem assim com meu interior também, e eu acho importante demais que a gente mantenha essas coisas. Todo interior é meio parecido, mas todos são únicos.
Ainda vou escrever muita história ambientada nesses cerrados que a gente gosta tanto.
Revivi esta epoca e foi muito bom. So resta saudades destes tmpos maravilhosos e recordar e bom dmais essa brasilinha saudosa…moro em s.paulo a 30 anos.parabens pelo conteudo do texto..saudade nao tem idade..!…joel…
BELO TEXTO, RETRATOU MAGNIFICAMENTE NOSSA CIDADE, DEU ATÉ FOME QUANDO VC FALOU DO ARROZ COM PEQUI, NOSSA CIDADE É ENCANTADORA, PENA QUE TAMBÉM JÁ NÃO MORO MAIS LÁ, MAS DE CONTÍNUO DOU UMA CHEGADINHA, PRA TROCAR UM DEDO DE PROSA COM OS AMIGOS.
Natália, muito emocionante seu texto. Me encontrei em várias passagens dele. Moro hoje em Montes Claros mais quando me aposentar quero voltar para aquela terra!!
Como Brasília foi bem retratada em suas palavras.
Em cada estrofe eu lembrava da minha infância.
Parabéns!
Oi Natália!Vc não deve mais se lembrar de mim,mais sou da mesma rua em que vc cresceu e passou as suas férias.”Juca Flávio”.Me lembro que brincávamos muito na rua até mais tarde de pique esconde,pular corda, pular elástico,pára a bola,”quemada”…Eram tantas as brincadeiras que não saem da memória…Ao ler o seu texto pude lembrar de muitas, mais a melhor mesmo era no São João que o Seu Tio Anderson virava nosso boneco ao colocar todos os traques nos seus dedos e estourá-los de uma só vez. Muitos risos..Que bacana lembrar desses momentos!Excelente texto..Parabéns e Sucessos pra vc.
Lindo Natália. Parabéns.
Amo sua família de Brasilinha.