Na minha primeira viagem ao sudeste asiático, eu era uma chata. Chata e pobre, mas mais chata que pobre. Tinha uma lista gigante de restrições alimentares com as quais lidar. Fazia cara feia para a maior parte dos vegetais. Coisas com textura? Eca. Tempero adocicado em comida que de acordo com a minha limitada compreensão de mundo deveria ser salgada? Eca. Qualquer picantezinho que fosse? Lágrimas eternas. Eu tinha até uma lista de coisas brancas que eu não comia: cogumelos, ovo, palmito. Paladar infantil é o nome educado, mas, demos nome aos bois. A verdade é que eu era uma menina chata criada com danoninho.
Não preciso dizer que isso afetou e muito minha experiência com a rica gastronomia asiática, e não só com ela. Entre todos os ingredientes para os quais eu torcia o nariz e ter que contar as moedinhas do mochilão de 10 meses, passei vinte dias na Tailândia comendo quase que apenas cachorro-quente ou qualquer outra porcaria processada no 7-eleven. Caminhava quilômetros nas ruas caóticas das metrópoles indianas em busca do símbolo máximo da comida de merda, ou aquilo que eu carinhosamente apelidei na época de M-amarelo-gigante-da-alegria-e-do-amor. Não me orgulho de nada disso.
Longe das metrópoles, a coisa se complicava para o meu lado. Eu me lembro de várias vezes ler e reler o cardápio, frustrada por não encontrar nem uma opçãozinha que me parecesse comestível. É que, vocês talvez possam imaginar, há cidades da Índia em que você só consegue encontrar comida indiana e comida indiana não era uma opção para mim.
Hoje, fico imaginando um indiano chegando em um restaurante mineiro em Ouro Preto na expectativa de encontrar arroz com curry e butter chicken. Ou pedindo ao cozinheiro para preparar o prato dele sem alho e sal, que deve ser o equivalente em Minas à pimenta e massala deles. Mas, na época, eu via as situações com olhos de fome e, como todos sabem, a fome é a inimiga número um do bom senso. Diversas vezes tive que apelar para a criatividade para criar um jantar que eu pudesse comer, como a refinada combinação de manga com batata frita.
Mas os cardápios dos restaurantes não eram meu único problema. Graças ao pequeno princípio da oferta e da procura, os mercados indianos tinham o hábito inconveniente de vender apenas produtos usados diariamente pelas família indianas. Naquela época, o governo ainda não tinha aberto o país para as grandes redes internacionais de supermercados. Por isso, as compras eram feitas em mercadinhos locais, com produtos locais, produzidos em fazendas locais, ainda mais em cidades pequenas como Chandigarh. Incrível, não? Isso é tudo o que eu poderia querer encontrar hoje. Mas, na época, a ausência dos meus então amados produtos industrializados dos conglomerados alimentícios me causava uma insuportável sensação de solidão entre as prateleiras.
Mercado local na Índia
Mas a gente se virava como podia e, nesse caso, a forma que encontramos foi comer sanduíche de queijo. Todos os dias. No almoço e no jantar. E queijo ali ou era o tradicional panneer – que, adivinhem, eu não curtia muito – ou aqueles queijos processados embalados individualmente que parecem de plástico. Sanduíche de queijo. Duas vezes por dia. Por pelos menos quatro meses. Sim, chegou o dia em que eu surtei e, entre lágrimas, resolvemos buscar uma alternativa para a nossa alimentação.
Foi quando conseguimos alguns ingredientes para preparar um almoço quase brasileiro – tínhamos frango, arroz soltinho feito na hora, batata cortada uma por uma e frita no ponto certo da crocrância -, mas nosso colega de quarto indiano, o Dev, também tinha decidido cozinhar e encheu nosso prato com uma boa colherada de egg pakoda, criando uma exótica mistura indo-tupiniquim na nossa tão aguardada refeição livre de especiarias. No dia seguinte, voltamos aos sanduíches de queijo.
A Índia foi, sem dúvidas, meu maior desafio gastronômico na época, mas as coisas não foram muito diferentes no resto da Ásia. Em Hong Kong, as restrições orçamentárias eram mais fortes que as gustativas, por isso sempre tivemos que apelar para as promoções de um dólar do McDonalds que ali, dizem, é o mais barato do mundo. Alguns dias, no entanto, reservamos para provar a autêntica comida chinesa. Mercado local, cardápio com fotos e uma verdadeira disposição para experimentar algo novo. Ou quase. Depois de minutos e minutos de indecisão, o jantar escolhido foi… arroz à portuguesa.
Mas é engraçado como as coisas são. Olhando pra trás, eu vejo que, apesar de não ter aproveitado nada da comida asiática naquela volta ao mundo, foi essa experiência que abriu as portas para que eu expandisse meu paladar. Porque, se não fosse aquilo, não fosse eu ter passado seis meses em regime vegetariano forçado na Índia, não fosse eu ter sido obrigada a comer coisas picantes ou morrer de fome, não fosse eu não ter opção além de comer na feirinha de rua porque o mundo desabava em monções em Pukhet e não tinha como procurar um Burguer King na chuva, eu talvez ainda tivesse uma experiência gastronômica bastante restrita.
O mundo girou, eu girei com ele. Voltei à Tailândia este ano e me esbaldei de agridoce. Curry. Os molhos picantes que a maior parte do meu grupo deixava na mesa, mas eu não tinha medo de provar. Comi tanto que algumas vezes tive que desabotoar a calça para acomodar melhor a pança. E percebi que aceitar a gastronomia local é um passo importante no processo de assimilar a cultura e que, em muitos aspectos, a minha resistência à comida na viagem anterior tinha muito de etnocentrismo, tinha muito de resistência em deixar de lado todo o mundinho com o qual eu estava acostumada e me arriscar no novo.
E que bom que a gente cresce e que hoje eu meto a pimenta na minha coxinha, ocupo metade do meu prato com coisas verdes e adoro a maior parte das coisas que antes eu dizia odiar. Deixei de ser uma chata para ser uma pessoa aberta a tudo. Tudo, menos pepino. O pepino ainda não dá pra engolir.
Foto destacada: Shutterstock
A experiencia culinária é pra mim umas das melhores partes de uma viagem.
Parabéns por aprender a apreciar
Quando fui à Tailândia me esbaldei no Pad Thai, adorei a culinária. Mas o meu marido teve algumas infecções intestinais e resolveu que o mais seguro seria comer coisas que ele já conhecesse: Mac Donalds e KFC. Eu não vi muita lógica, mas quem tava doente era ele e eu me rendi ao fast good, muito à contragosto. Sinto falta da comida boa, saudável e barata de lá.
O pior é quando a limitação é uma questão de saúde. Tenho língua geográfica em não posso comer coisas picantes e ácidas. Sofri no Reino Unido porque tudo lá tem pimenta, até purê de batata. E sempre brinco que quando for ao México metade da mala será de miojo. Isso é duro porque não posso mudar.
E na verdade, não ligo para experimentar a gastronomia local, talvez pelo fato de comer apenas por obrigação. Sei que faz parte da cultura, mas não consigo me importar. Só quero não sentir dor ou fome.
Pepino realmente é uma abominação. Mas até pepino dá pra relativizar. Fica otimo no Pimm’s, é bem comestivel naquela conserva alemã e bom demais na preparação agridoce de restaurante japonês. Arroz é um desperdício de natureza – mas fica bom com moqueca, feijoada, no sushi, na paella, no risoto…
Eu até hoje só não consegui comer figado. E tenho horror a café com leite. Quero governar o mundo só pra baixar uma interdição ao café com leite 🙂
Oi, Nathália.
Eu também sou meio chata pra comida, mas tem coisa que é alergia mesmo: na Grécia comi uma comida que tinha pimenta (nem dava pra sentir o gosto dela de tão fraquinha e pouquinha), mas as consequências depois foram desagradabilíssimas, então é uma coisa que nunca mais entra no meu cardápio.
Já outras coisas é por ser chata mesmo. Quase perdi a oportunidade de comer o haggis, que, putsgrila, é bom dimais! <3
Mas a gente realmente só passa a apreciar essas coisas depois de passar mal com as porcarias industrializadas. Muito mal.
Abraços,
Nicole