O mito da síndrome da geração Y

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“Você está com a síndrome da geração Y”. Nunca ouvi essa frase, mas poderia. Falaram isso com um amigo meu, quando ele voltou de um período sabático. Ele só queria saber quais os planos do chefe para ele dali para frente. A resposta foi clara, pelo menos nas entrelinhas: ‘não há planos. Volte a trabalhar e entenda que o mundo não é tão bonito como vocês, os Ys, esperavam. Não existem unicórnios e nem empregos perfeitos’.

A tal da geração Y está na moda. Algumas vezes é retratada como o terror do Recursos Humanos. E o mercado de trabalho já tem até uma listinha de adjetivos não muito legais para os profissionais Y – dizem que somos impacientes, egoístas, preguiçosos, desatentos, orgulhosos e arrogantes. Ser da geração Y é, nas palavras daquele chefe, uma síndrome, algo indesejado. Declaração que não parece diferente do que os mais velhos falam dos mais novos há milênios. Sócrates, não o jogador, mas o filósofo, garantiu: “As crianças hoje são tiranas. Elas contradizem seus pais, devoram sua comida e desrespeitam seus professores.” Outro gênio, Albert Einstein, concordou, várias gerações (problemáticas) mais tarde: “O número de jovens que está genuinamente sedento por verdade e justiça é pequeno”.

O choque de gerações sempre causou conflito e comentários desacreditados dos mais velhos. Talvez isso explique os vários textos sobre o tema que viralizam na internet de forma recorrente e esbravejam contra esses jovens-que-não-entendem-nada e acham-que-a-vida-é-fácil. Um dos mais recentes deles explica que a geração Y é infeliz porque não entende que as expectativas que criamos nunca correspondem ao mundo real.

Essa tal de geração Y

Mas afinal, o que é a geração Y? Segundo a Wikipédia, a primeira vez que a expressão apareceu foi em 1993, na revista Ad Age. Era um editorial sobre os adolescentes da época. O termo geração Y seria uma referência a geração X, a anterior, que geralmente inclui as pessoas que nasceram nas décadas de 1960 e 1970. Já a geração Y teria os nascidos a partir de 1980 e até o ano 2000. Se voltarmos para trás na lista das gerações, existem ainda os Baby Boomers, batizados assim por conta da explosão populacional vivida no mundo, em especial na Europa. Seria a geração nascida logo após a Segunda Guerra Mundial, entre 1945 e 1964 (uma linha do tempo com as diversas gerações do século 20 pode ser encontrada aqui).

Cada uma dessas gerações teria características diferentes, como se um enorme rótulo embalasse os nascidos no período em questão. No caso dos Y, seria uma geração ambiciosa, preparada como nenhuma outra antes dela, mas sem paciência para respeitar hierarquias e o modelo de trabalho vigente. Uma geração que cresceu junto com a informática e a internet, foi educada pelos desafios dos jogos eletrônicos e mimada pelos pais. Enfim, seria uma geração de jovens que se acham especiais, quase que predestinados para o sucesso. O problema, explicam os mais velhos, é que se todos são especiais, ninguém é. Pronto, está montado o cenário para a infelicidade de uma geração inteira, que vai crescer frustrada por não entender matemática simples: felicidade = a realidade – expectativas. Se suas expectativas forem altas demais, então você estará no vermelho. Não é complicado enxergar o fim desse argumento – deixe seus sonhos para trás e entenda que a vida é complicada.

Eu nasci no final de 1985, portanto cresci enquanto o mundo descobria a informática e a internet. Na infância, joguei mais videogames que bolinha de gude (sim, fiz os dois). Sempre entendi que a vida profissional é importante e que o mercado está cheio de oportunidades para pessoas de talento e esforçadas, mas também sempre acreditei que a vida pessoal é muito, mas muito, mais importante do que a carreira profissional. Ambicioso, cheio de planos para o futuro e criado numa geração online e sonhadora – se esse é o conceito, eu sou Y. Só que não é exatamente assim.

computadores

Foto: Michael Surran, Wikimédia Commons

A falha é óbvia, mas parece não ser notada. Começamos a tratar uma geração inteira com um estereótipo, como se todos os jovens do mundo fossem exatamente iguais, com o mesmo histórico de vida. Dizer que todos os Y foram tratados com privilégios é uma verdade que só pode ser aplicada para o grupo que há séculos já é privilegiado, dos homens, brancos, de classe média e heterossexuais. Aplicar um modelo pensado para explicar a situação dos Estados Unidos ao Brasil é ainda mais complicado. Quais jovens brasileiros têm convicção que são especiais? Quais podem ser definidos como parte da mais preparada e ambiciosa das gerações? Certamente não os jovens das classes mais pobres.

Uma simples olhada na página da Wikipédia em inglês mostra que a geração Y não é um consenso. Estudiosos escrevem sobre isso há anos, com diversas opiniões sobre o assunto, muitas delas conflitantes. Foi criado um mercado de conselheiros e experts no assunto, gente que dá palestras e ensina empresas a lidar com essa nova geração. Um jornalista norte-americano especializado em educação chegou a dizer que estereotipar estudantes se tornou uma indústria cheia de contradições.

Apesar disso, passamos a tratar as tais gerações sem contestar, num nível quase religioso. São uma espécie de horóscopo moderno: Nascidos entre 1980 e 2000 são do signo Y. O número da sorte é 7 e a cor lilás. Nascidos entre 1960 e 1980 são do signo X. O número da sorte é 9. A cor é vermelha. Pronto, colocamos todos os jovens do mundo no mesmo saco, não importa se ele veio de uma família tradicional, se foi criado pelos avôs, se perdeu um dos pais, se sofreu algum abuso na infância ou se simplesmente nasceu num país com um contexto diferente dos países desenvolvidos.

Enquanto partes do mundo falam de uma geração que acha que tem o rei na barriga, a Grécia fala da geração dos 700 Euros. São jovens que lutam contra 70% de desemprego e tentam achar formas de ganhar mais de um salário mínimo, mesmo para quem tem um currículo cheio de qualificações. Seriam esses também Y? Será que os jovens gregos se consideram especiais? Não entendem que a vida é dura?

Há cerca de 100 anos o mundo conheceu a Geração Perdida, um rótulo bem pior que o Y, vamos concordar. Eram os filhos do fim do século 19, que nasceram numa época de intenso otimismo pelas realizações e avanços tecnológicos conquistados pelo homem. O futuro prometia muito. Só que tinha uma Grande Guerra – a primeira mundial – no meio do caminho. Na época, um jovem mecânico não conseguiu descobrir o defeito de um carro. O dono da oficina, da geração anterior, gritou: “vocês são uma geração perdida”. A escritora Gertrude Stein presenciou a cena, contou para o também escritor Ernest Hemingway, que imortalizou toda uma geração dentro do mesmo rótulo. O próprio Hemingway, um dos perdidos, completou: “todas as gerações são perdidas”. A questão é só saber como.

foto antiga da primeira guerra mundial

Trincheiras da 1ª Guerra. Foto: Wikimédia Commons

Insatisfação com o trabalho: não só dos Y

Há alguns meses percebi que nenhum dos meus amigos gostava do trabalho que tinha.  Nenhum. As reclamações eram as mesmas, supostamente típicas dos Ys: falta de desafios, falta de clareza sobre o futuro na empresa, falta de sentido para as tarefas realizadas no dia a dia, falta de flexibilidade. “Ahha! Então é mesmo uma geração de infelizes!”, alguém pode dizer.

Numa das empresas que trabalhei, convivi com vários funcionários da chamada geração X, esses que supostamente ficam nos empregos, entendem que a vida real não é cheia de unicórnios coloridos e que o cargo de CEO da empresa não está logo ali, na esquina. Enfim, a geração X não é mimimi, acusação já feita contra os Ys até mesmo pela revista Time. Só que a maioria absoluta dos Xs que eu conheci também não eram felizes com a vida profissional e gostariam muito de chutar tudo para o alto e largar seus empregos. Pais e mães de família, eles não podem fazer isso.

“Você pediu demissão? Deixa eu te dar um abraço!”

“Vai embora mesmo. Ou então você acaba que nem eu”

“Nunca acreditei que você daria conta de ficar aqui. Ninguém sai para ver o mundo e fica aqui”.

“Continue realizando os nossos sonhos”.

Eu ouvi todas essas frases de colegas de trabalho, de gente que seria da geração X. Foi quando eu anunciei que ia pedir demissão. Não com outro emprego garantido, mas sem nada em vista – eu só queria a oportunidade de me jogar no mercado e procurar algo melhor. No lugar de palavras de cautela, recebi um apoio geral e irrestrito. Ora, se é só a geração Y que é sonhadora, por que outros empregados compartilham desses sonhos?

firma

Foto: Tropenmuseum, Wikimedia Commons

O modelo de trabalho que tanto desagrada a geração Y também desagrada membros de outras gerações. Se há tanta gente incomodada, talvez seja porque esse modelo que é ruim, e não os trabalhadores. Deixando de lado toda essa questão de XYZ, o que temos de concreto é que o mundo se modifica bastante a cada geração. Os jovens trazem novas demandas e vivem situações diferentes, muito embora não seja correto categorizar cada um deles num rótulo. No lugar de achar que a nova geração é mimada e está exigindo coisas sem sentido (tipo felicidade no trabalho, olha que absurdo!), talvez seja mais apropriado entender quais as demandas dessa geração e perceber as mudanças que o mundo passou nas últimas décadas. Afinal, as novas gerações são um importante motor de mudança da humanidade.

Mas o que isso tem a ver com viagens?

 O 360meridianos é um blog de viagens, mas quem nos acompanha sabe que sempre vamos além de dar dicas de lugares legais para visitar. Falamos sobre estilo de vida – já mostramos aqui que o modelo de trabalho tradicional, de ficar trancado na empresa, de 9 às 6,  não é o único caminho possível. Escrevemos sobre a importância que um ano sabático teve em nossas vidas. Já mostramos que viajar não precisa ser tão caro e muito menos tão raro. E recentemente aderimos a uma vida nômade. Temos uma tecnologia do século 21, que permite mais flexibilidade nos horários e no estilo de vida, mas ainda estamos presos a um modelo do século 19. Por que não mudar isso? Por que não trabalhar viajando, por exemplo?

Defendemos a necessidade de repensar o modelo de trabalho, que há gerações deixa pessoas sobrecarregadas, estressadas, infelizes e, em alguns casos mais sérios, doentes. No entanto, muitas vezes esse desejo intenso por mudança, por um mundo e um estilo de vida diferentes, pode ser encarado como uma simples síndrome, um inexperiente desejo juvenil. Dói perceber e ler relatos que colocam todos os jovens do mundo na mesma condição – pior, na condição de infelizes por não se adaptarem ao mundo real. Isso não poderia estar mais errado.

A infelicidade com o modelo de trabalho existente hoje vai muito além dos nascidos a partir de 1980 – não fosse isso, a palavra trabalho não teria ligações com um instrumento de tortura e o sábio Seu Madruga não teria dito a clássica frase “trabalho não é ruim, ruim é ter que trabalhar”. A solução não é parar de trabalhar, óbvio, mas aproveitar as oportunidades únicas que as novas tecnologias e ideias permitem e evoluir para um modelo onde trabalho e realização pessoal andem juntos.

É claro que esse não é o caminho para todos. Assim como não tem sentido colocar todos os jovens do mundo debaixo do mesmo rótulo, é evidente que o que é bom para alguns pode não ser o melhor para outros. Tem quem não goste de viajar, por exemplo, o que faria da ideia de uma vida nômade insuportável. Tem quem goste do emprego fixo, da carga horária definida e do modelo tradicional. E existem aqueles que lutam por educação e por inclusão social: para esses é ainda mais complicado falar em possibilidades além do mercado tradicional. O ponto aqui é apenas mostrar que uma geração inteira não é completamente infeliz e muito menos é culpada por isso. É mostrar que sonhar e perseguir sonhos não é errado e não causa infelicidade de ninguém. Por outro lado, desistir deles e se conformar com a realidade deixa pessoas infelizes há séculos.

*Foto destacada: VeronicaTherese, Wikimédia Commons

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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37 comments

Como você disse, é muito complicado rotular, embora seja impossível não generalizar quando se fala de um coletivo. E acho que todo mundo se questiona um pouco na vida profissional, até aqueles que estão super satisfeitos afinal, tudo tem 2 lados! Eu tenho dentro de casa um exemplo de quem resolveu acreditar num sonho e trabalhar com o queria, do jeito que queria. E pelo que vejo, os questionamentos e insatisfações existem em qualquer trabalho, mas quando você encara aquilo como uma escolha e não um fardo fica mais fácil mudar o que é preciso e aceitar o que deve permanecer como está. E quem pensa que o trabalho não tradicional se resume em fazer só o que ama e acredita esta enganado. Veja o Zeca Pagodinho mesmo, que fez até propaganda da Nova Schin, hahaha. Mas sério, acho um saco essa história de ser da geraçao X ou Y(até porque eu sou de 1979 e não me encaixo em nenhuma delas,rs). O importante é parar de reclamar da vida, aceitar que trabalho é sim uma escolha, seja ele chato ou não, tenha você nascido em berço de lata ou ouro, esse tipo de mudança é algo que só depende da disposição e vontade de cada um!

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Cara, parabéns pelo texto! =)
Acho que, no fim das contas, o importante mesmo é não deixar de procurar algo que te satisfaça realmente.. não importa quanto tempo isso leve, como disse um colega em outro comentário.
Te cuida por aí!

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Parabéns pelo texto, Rafa! Um dos seus melhores no blog – digo isso porque leio (quase) todos.

Semana que vem vocês já estão de volta?

Abraços!

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Isso sem contar que generalizar alguém que nasceu no começo dos anos 80 com alguém que nasceu perto dos anos 2000 não teria como estar certo ne? Vejo a diferença gritante entre eu e todos os meus primos (nem sei quantos, uns 15), todos nascidos entre 81 e 96… Nada a ver um com o outro…

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Excelente texto Rafa, pra variar!

Confesso que eu aqui, sentada na minha cadeira, às 8h04 e pronta para MAIS UM DIA DE TRABALHO, senti uma pontada de inquietação ao ler…

Parece que as “indiretas” foram para mim!

PARABÉNS A TODOS VOCÊS E ESTOU MORRENNNNNNNNNNNNNNDO DE SAUDADES! Preciso contar das minhas “próximas” aventuras…

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Oi, Rafael,
Eu sou da ‘geração X’ e tive três longos empregos na vida. Deixei cada um com ‘uma mão na frente e outra atrás’, como dizem. Sempre em busca de me sentir mais preenchida, acordar com vontade de ir pro trabalho, ser desafiada a ir sempre além do que pensava ser meus limites. Só que não me chamavam de louca, mas sim de corajosa. Tive sorte de ter tido muito apoio sempre, principalmente das minhas filhas. Nada disso é novo, sempre foi assim. Como você falou, tem os que encontram alegria de um jeito, tem os que varia…Importante é acreditar no que sentimos, e seguir em frente sempre, sem medo de ser feliz. Valeu!

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ô cara, minha filha deu o link do seu texto, muito bom. Comentei uma vez pros alunos de um cursinho de vestibular em que trabalhei três meses antes de me mandarem embora que não se preocupassem muito se não acharam o que buscavam porque eu já tinha passado dos 50 e ainda não tinha encontrado rs

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Rafael, vc arrasa 🙂 acabei de publicar um post no blog que tava quase pronto faz tempo e eu tava sem querer finalizar enquanto nao organizava minha cabeça pós-viagem. E o ultimo item tem a ver com isso que vcs defendem: outros caminhos são possíveis. A verdade é que ainda tou xomeçando a jdeixar de me sentir “culpada” por querer algo diferente daquilo com que deveria me conformar. Parabéns pelo texto! Vamos correndo atrás pra mudar as coisas 🙂

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Onde eu assino? 🙂

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Excelente texto, Rafael, eu, um Y, já foi chamado de doido,maluco,etc…por ficar mudando de emprego quando não via mais desafios no trabalho atual!! Mas é como vc diz : não tem como colocar o mesmo rotulo em todos!!

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