Durante nossa visita à Belfast, nos deparamos constantemente com a dualidade de Irlanda x Reino Unido e memórias das histórias do IRA e da UVF. Nesse texto compartilhamos um pouco da história do The Troubles, o conflito que marcou a história da Irlanda do Norte entre os anos 1960 a 1990 e como Belfast de hoje ainda carrega marcas dessa guerra.
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The Troubles, ou a Guerra Civil na Irlanda do Norte
“A Irlanda é o primeira e provavelmente será a última colônia britânica”, ouvi num podcast, tentando entender o caldeirão em ebulição que é a Irlanda do Norte.
Os Problemas, ou melhor, “The Troubles”, é nome oficial do conflito na Irlanda do Norte, que foi de meados dos anos 1960 até 1998.
De um lado, os protestantes ou unionistas, que defendem a permanência da Irlanda do Norte no Reino Unido. Do outro, os católicos, nacionalistas ou republicanos, que defendem que o domínio da Inglaterra sobre a Irlanda do Norte é ilegal e que toda a ilha deveria ser unida.
“Os dois lados eram violentos, mas a maioria das pessoas só conhece o IRA, nem sabe o que era a UVF”, comentou Molly, uma jovem norte-irlandesa de 25 anos que conheci trabalhando na Inglaterra. “Você reparou nas bandeiras?”, me perguntou.

Ela mencionava as bandeiras do Reino Unido. Em alguns bairros de Belfast e nos arredores, você encontra mais bandeiras da União e cartazes com a cara da rainha do que eu já vi na Inglaterra durante festas e comemorações.
“Meu pai mora num bairro em que o obrigam a colocar as bandeiras em casa. Ele não tem um lado, mas é obrigado a colocar de qualquer forma”, explicou Molly.
Como surgiu a Irlanda do Norte, o IRA e a UVF
A Inglaterra invadiu a Irlanda no período medieval e expulsou do norte do país a população local, enviando colonos protestantes. Durante séculos, toda a Irlanda seguiu colonizada.
No início dos anos de 1920, o movimento de independência da Irlanda ganhou força. Foi durante esse período que surgiram o Exército da República Irlandesa (IRA) e as Forças Voluntárias do Ulster (UVF), grupos paramilitares dos lados opostos.
Em 1921, o Parlamento Inglês forçou a divisão da Ilha Irlandesa, com o apoio dos descendentes dos colonos protestantes. Foi assim que surgiu oficialmente a Irlanda do Norte e o resto da Irlanda tornou-se uma república livre.

Para os católicos que ficaram na Irlanda do Norte, cerca de um terço da população, as condições de vida não eram nada boas.
Sem representatividade política e com a força policial inteiramente composta por unionistas, eles passaram a ser tratados como cidadãos de segunda classe: não conseguiam vagas em boas escolas, eram recusados para postos de trabalho, não tinham acesso a boas moradias e até seu voto valia menos.
De movimentos pacíficos à guerra entre vizinhos
Em algumas décadas a situação tornou-se insustentável. Para tentar responder às injustiças que vinham sofrendo, em meados dos anos 60 diversos grupos católicos fundaram um movimento pacífico de direitos humanos. E foram respondidos com hostilidade.
Em 1966, uma nova formação da UVF e outros grupos paramilitares protestantes se organizaram contra o movimento católico. Junto com as forças policiais, coordenaram ataques às comunidades católicas: invadiam e incendiavam casas, espancavam pessoas e faziam outros atos terríveis.
A coisa ficou tão feia que em 1969 o exército inglês foi convocado a agir na Irlanda. Inicialmente, foram até vistos com bons olhos pela população nacionalista. Mas logo perceberam que os militares ingleses não estavam do seu lado.
Em 1972, no evento conhecido como Domingo Sangrento (Bloody Sunday), as forças inglesas atiraram contra uma manifestação pacífica, matando 14 pessoas na frente das câmeras de TV.

Assim o IRA, que até então estava adormecido, ressurgiu. Não só isso, como um braço dissidente, o Provisional IRA, ou Provos, que decidiu pegar em armas e revidar. Centenas de jovens, sem perspectiva e crescendo cercados pelas atrocidades dos protestantes, foram radicalizados.
Entre os anos 1970 e 1990, o IRA coordenou diversos atentados sangrentos com o objetivo de minar as forças inglesas e tentar forçá-los a deixar a Irlanda do Norte. No rastro desses ataques, civis dos dois lados morriam indiscriminadamente.
Apesar da UVF também ser responsável por atentados a bomba e casos de violência, somente o IRA ficou internacionalmente conhecido. E muito mais membros do IRA foram presos do que da UVF.
Somente em 1998, com o apoio dos Estados Unidos, um tratado de paz chamado Good Friday (Boa Sexta) pôs fim ao conflito. Parte da solução foi a criação de um governo dividido, com representantes Unionistas e Republicanos com poderes iguais. A polícia e o exército também não podem ter uma porcentagem maior de um grupo ou o outro.
The Troubles resultaram na morte de mais de 3500 pessoas e cerca de 45 mil feridos, mais da metade delas civis.
Como é Belfast Hoje, ano após o conflito
Eu me perguntava se estava na Irlanda ou no Reino Unido. As lojas de suvenires vendem, lado a lado, símbolos celtas e da rainha da Inglaterra.
Nos pubs, a Guinness é a cerveja mais tomada e as músicas cantadas são irlandesas, mas as tais bandeiras da união estão para todos os lados.
As duas identidades do país se confundem. Nem um emoji de bandeira a Irlanda do Norte tem. No centro de Belfast, quase não há referência aos Troubles, com exceção de grafites ou decoração de pubs.
Só senti tensão quando fui visitar os “Muros da Paz”, que ficam bem fora da área turística.
Uma visita aos Muros da Paz em Belfast
O motorista do ônibus avisou, com um sotaque carregadíssimo, que não poderia nos deixar na parada indicada pelo Google, por conta de um evento. Com isso, fizemos uma viagem de quase 20 minutos do centro de Belfast até os subúrbios da cidade e descemos num ponto aleatório no bairro de Shankill.
Ao chegar na rua principal, nos deparamos com as calçadas cheias de lixo acumulado de fim de festa. Grupos de pessoas, claramente bêbadas, algumas uniformizadas, se agrupavam em frente aos pubs. O clima porém, combinava com a leve chuva que caia: estranho, meio desagradável. Eu sentia como se estivesse no lugar errado, na hora errada.
Seguimos pela rua. Várias casas com bandeiras do Reino Unido. Um mural pintado numa parede comemorava um grupo de soldados que foram para a Segunda Guerra. O mural no quarteirão seguinte era mais sinistro. Homens mascarados, carregando fuzis, uma grande mão vermelha e dizeres: “Voltaremos se Necessário. U.V.F.”
Por fim, chegamos ao lugar que havia nos levado até ali. Um enorme muro, que erguia-se com placas de ferro metros acima da calçada.
Aquele era o Muro da Paz de Falls-Shankill.
Esses paredões foram erguidos a partir de 1969 para tentar conter a brutalidade entre bairros de católicos e protestantes. Até hoje, 97 barreiras estão de pé nas regiões norte e oeste de Belfast, que são bairros mais pobres.
Seguimos ladeando o muro de 8 metros de altura até chegar a grandes portões cinza. Estavam abertos. Mas depois descobri que ficam fechados toda a noite. A própria população local votou num referendo recente para que a medida continuasse.
Caminhamos mais um pouco, agora sob chuva forte, até o muro do lado de Falls. Esse estava coberto de grafites coloridos com mensagens de apoio ao membros do IRA.
A frase de Molly sobre a UVF ser desconhecida fez ainda mais sentido quando cheguei no Airbnb à noite. Resolvi pesquisar o que era a tal manifestação que eu havia cruzado mais cedo.
Trata-se de uma parada militar anual em celebração a um membro UVF, que foi morto pelo exército britânico nos anos 80, pouco depois de assassinar um homem católico com 11 tiros.
Como visitar os Muros da Paz e aprender mais sobre a história?
Acredito que é uma existem opções melhores do que ir por conta própria, como eu fiz.
A cidade oferece os Black Cabs Tours, passeios com motoristas de taxi que contam as histórias que viveram enquanto circulam pelos muros. Esses tours custam a partir de £30,00 por pessoa, e tem como principal vantagem já incluir o transporte a partir do centro de Belfast e te proteger da potencial chuva. Veja aqui um dos tours com melhores reviews na Get Your Guide.
Uma opção mais barata e igualmente interessante é fazer um tour guiado a pé por essa região. Encontrei passeios a partir de 18 libras. Esse tour de 3 horas é com dois guias, ex-prisioneiros dos dois lados do conflito, para ter uma boa perspectiva dos pontos de vista. Também é possível fazer um tour que foca em arte de rua moderna, explorando outras partes da história. Veja aqui.
Derry Girls Paz na Irlanda do Norte
A série Derry Girls é muito boa para relatar de forma leve os anos finais do conflito e a reação da população ao acordo de paz.
Até hoje, apesar da paz, a Irlanda do Norte permanece dividida.
Em 2022, membros da UVF e outros grupos paramilitares unionistas ameaçaram renunciar ao Acordo de Paz de 1998 caso as regras do Brexit complicassem ainda mais a situação das fronteiras entre Irlanda e Reino Unido.
Para Molly, que nasceu quando o conflito em seu país já tinha acabado, tudo o que aconteceu ficou no passado. “Mas eu sei que o colonialismo ainda existe e é o culpado de todos os problemas”.