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Atlas: Brasil

Do aeroporto enquanto rodoviária

“O glamour foi para o espaço”, comentou o Reitor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a UNIRIO, uma das mais importantes do país. Se você, assim como o glamour, esteve na lua nos últimos dias, explico: ele falava sobre a situação dos aeroportos do Brasil, onde viajantes esperam voos de bermuda e camiseta, não mais de terno e gravata. A polêmica no Facebook começou quando uma professora da PUC postou a foto de um homem vestido de forma casual no Aeroporto Santos Dumont. “Rodoviária ou aeroporto?”, perguntou ela, para delírio dos amigos docentes.

A história ganhou ares ainda mais absurdos quando o homem humilhado via rede social apareceu. Ele, que foi julgado pela vestimenta, é um advogado e procurador-adjunto de Nova Serrana, em Minas Gerais. Apelidado pela professora de “Mr. Rodoviária”, o homem voltava de um cruzeiro internacional. E agora, José?

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O glamour já foi tarde

O glamour dos aeroportos realmente foi para o espaço. E ainda bem. Eu me lembro como foi o reinado do glamour. Quando criança, fui frequentador do Aeroporto da Pampulha, então o mais movimentado de Minas Gerais. Mas nunca entrei num voo. Nós íamos lá só para ver pousos e decolagens, afinal nossas viagens eram feitas de ônibus mesmo. As crianças da família – inclusive eu – adoravam o programa.

Note que sou de uma família de classe média. Sempre viajei nas férias, mais de uma vez por ano. Mesmo assim, ir de avião nunca foi a opção mais barata. Não era impagável para minha família, claro, mas tampouco era um dinheiro para gastar de forma corriqueira. Nos anos 90, viajar de avião era um evento por si só. Daí a ideia do glamour.

Entrei pela primeira vez num avião no final de 2007, num voo da Webjet. Eu tinha 22 anos e o glamour de voar já estava morto e enterrado. As viúvas dele choravam, assim como fazem hoje. Reclamavam do espaço entre as cadeiras. De que não havia lanche em voos de uma hora. De que o amendoim oferecido era ruim. Ou, acredite se quiser, que a empresa área não fornecia nem amendoim – era preciso pagar mais, vê se pode! Assim como eu, as viúvas do glamour pagavam 89,90 na passagem, se possível parcelando em duas vezes. E reclamavam, afinal não importa se ficou mais barato e acessível voar. Talvez você tenha visto alguém compartilhando a foto abaixo, junto com uma enorme nostalgia: “Olha só como era a classe econômica antigamente. Como piorou!”.

como eram os voos antigos

Veja a contradição: alguns dos que hoje viraram passageiros frequentes também reclamam que viajar de avião não é mais uma coisa chique, mesmo que eles não voassem tanto quando o avião era um símbolo da elite. O aeroporto orkutizou, virou rodoviária. Com isso, deixou de ser um evento social exclusivo, aquela festinha que muitos sempre sonharam em participar, só para fazer inveja no vizinho. Mas, quando o convite da festa veio, foi para a vizinhança inteira. Depois do 1% mais rico, a classe média deveria ser a próxima na fila dos privilégios. Como assim essa fila encheu de gente?

Não sei você, mas me assusta como muitos brasileiros encaram essa questão. E não adianta vilanizar os professores da polêmica do Facebook, como se eles fossem anormais. O pensamento deles está em harmonia com o de uma grande parte da população brasileira. As viúvas do glamour não são poucas e a realidade nunca é simples, bom X mau. Nas várias nuances desse preconceito social cabem vários culpados e heróis. Inclusive eu e você – e dos dois lados.

fotos de voos antigos

Foto: Arquivo British Airways

No final de 2012, a escritora Danusa Leão já tinha colocado lenha na fogueira. Em editorial na Folha de São Paulo, ela disse: “Ir a Nova York ver os musicais da Broadway já teve sua graça, mas, por R$ 50 mensais, o porteiro do prédio também pode ir, então qual a graça?”. Irônica ou não, uma coisa é certa: ela teve que pedir desculpas aos porteiros do prédio. Que sim, podem muito bem dar um pulinho em Nova York.

Outra contradição: reclamamos que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Mas quando essa desigualdade dá sinais de que caiu um pouco, lamentamos que não temos mais privilégios que o outro. Para deixarmos de ser um país desigual, não basta que as rendas das pessoas se encontrem no meio. É preciso uma mudança de mentalidade. Os que sempre foram privilegiados não podem exigir essas antigas preferências. Parece óbvio, mas não é – enquanto existirem privilégios, seremos um país desigual.

Se o aeroporto virou rodoviária, isso significa que passamos a usá-lo de forma mais frequente. Por isso, a atitude sensata é aceitar e comemorar essa nova situação, exigindo dos governantes investimentos que façam com que a infraestrutura dos aeroportos acompanhe esse aumento de demanda. Por outro lado, a atitude mais estúpida possível é achar que é necessário enfrentar os 50º do aeroporto Santos Dumont com roupa social, sem necessidade. Eu vou de bermuda, camiseta e chinelo. Afinal, não há nenhum glamour em derreter de calor.

 

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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