“Viajar é fatal para o preconceito, a intolerância e as ideias limitadas”, escreveu o norte-americano Mark Twain. E completou: “Não se pode ter uma visão ampla, abrangente e generosa dos homens e das coisas, vegetando num cantinho do mundo a vida inteira”.
A frase acima tem uma verdade e um grande erro. Sim, viajar pode ser uma forma fantástica de quebrar preconceitos. A ideia é simples. Quando você entra em contato com outras culturas, percebe que esse “outro” não é tão diferente assim – são pessoas que sofrem, amam, batalham pela vida, têm sonhos, frustrações e desejos. O outro, na realidade, poderia ser você: a maior das diferenças é a geográfica.
A própria ideia de “outro”, como se aquela pessoa fosse complemente diferente e inadequada para participar do nosso estilo de vida, muitas vezes visto como o melhor, só ajuda a afastar pessoas, reforçar diferenças e aumentar preconceitos.
Mas e o erro da frase do Mark Twain, cadê? Bom, antes de falarmos dele, deixa eu te contar como uma viagem me ajudou a quebrar alguns preconceitos.
Quebrando preconceitos mundo afora
Já contei inúmeras vezes aqui no blog o tremendo choque cultural que tomei ao viver por seis meses na Índia, mas falei pouco sobre um dos maiores aprendizados que tive lá: eu descobri como preconceitos nascem rapidamente.
“Não quero falar com ele. Ele é indiano”. Essa é uma versão (censurada e sem palavrões) de uma frase que eu disse uma única vez e da qual não tenho orgulho. Em minha defesa, foi dita num momento de fúria, minutos após vários indianos terem sido agressivos com nosso grupo, especialmente com as mulheres. Sim, o machismo é um problema da Índia, talvez o pior dos problemas. Não que o Brasil esteja livre disso, mas na Índia o problema é pior. Até mesmo porque lá tudo é multiplicado por um bilhão.
Mas o comportamento de alguns indianos não significa que todos sejam assim. Numa sociedade com 1.3 bilhão de pessoas, é lógico que existem muitos que não concordam e lutam contra os problemas do país – gente que sofre as consequências daquilo, afinal vive o dia a dia, enquanto os viajantes voltam para casa.
Para cada indiano mala que conheci, encontrei outros tantos que são pessoas incríveis. Alguns deles viraram meus amigos. Então, por que diabos não querer falar com um indiano? Gente chata, sem noção ou ruim existe em qualquer país, cultura e religião. Por sorte, minha explosão preconceituosa foi tão absurda que logo notei meu erro. Ao ver como preconceitos nascem rapidamente, passei a tomar cuidado e evitar associar um povo inteiro ao comportamento de uma pequena parcela dele.
Há outros exemplos. Desde 2001, o ocidente aprendeu a matemática do islamismo = terrorismo, numa visão que esquece o básico: atos de terror também são praticados por outras religiões (sim, existe terrorismo cristão). Esse preconceito é tão normal na nossa cultura que, no caso de uma tragédia ou acidente, a presença de um muçulmano no local torna a pessoa imediatamente suspeita do crime.
Ao viajarmos para fora da ilha cristã que é o Brasil, conhecemos muçulmanos – assim como budistas, sikhs, ateus, hindus e muitos outros – e descobrimos que por trás de todo medo do diferente há, olhe só, uma pessoa. Sim, uma pessoa normal, como eu, e você.
Preconceitos nascem de associações erradas na cabeça das pessoas, mas podem também virar armas nas mãos de nações. Ou não seria o preconceito contra muçulmanos interessante aos olhos dos países que travam a guerra contra o terror? Por isso, enfrentar preconceitos é mais do que uma forma de crescimento pessoal. É uma forma de desarmar a guerra de ódio que existe no mundo. Pode não ser uma grande contribuição, mas não deixa de importar no saldo final.
Em 2011, o escritor moçambicano Mia Couto escreveu um texto para a Conferência de Estoril. Uma das frases mostra a importância que o medo do diferente tem na sociedade:
“Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar além da fronteira da minha língua, da minha cultura e do meu território. O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte, vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há, neste mundo, mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.”
Vivemos com medo de tudo, mas o diferente tem um papel fundamental na construção desse discurso. Ao cair na estrada, é possível entender essas diferenças. Mas é preciso força de vontade para superar preconceitos. “Há quem tenha medo que o medo acabe”, conclui Mia Couto. O que nos leva ao erro do começo do texto.
O erro
Viajar não torna ninguém automaticamente melhor. É, eu sei que tem um monte de textos bombando pela internet que garantem o contrário – e fazem questão de dizer que cair na estrada cria pessoas menos preconceituosas, gente mais cabeça aberta e mais legal. Isso não apenas é um erro, mas também um baita preconceito.
O mundo não é simples assim, como uma laranja que possa ser facilmente dividida em duas partes iguais: a metade que viaja e a que fica “vegetando num cantinho do mundo a vida inteira”. Se admitirmos que essa frase é verdadeira, estaremos dizendo que quem viaja é menos preconceituoso do que aqueles que preferem outras coisas. Tem quem não goste de viajar. Ou quem vá todo ano para o mesmo lugar, porque se sente bem ali. Ou quem tenha medo de avião, o que torna impossível conhecer o outro lado do mundo, justo o mais diferente em relação ao Brasil.
E aí? Essas pessoas são mais preconceituosas só porque não viajam? E quem não viaja pela falta de dinheiro, como fica? Se seguirmos esse raciocínio, diremos que os mais ricos – que viajam mais – são menos preconceituosos do que os mais pobres, um raciocínio que não poderia ser mais errado.
Sim, viajar pode quebrar preconceitos. Mas o detalhe aí é o “pode”. Existe o potencial, mas cair na estrada não é a única forma de alcançar isso – mesmo quem vive a vida inteira na mesma cidade, sem sair do lugar, pode ficar menos preconceituoso a cada dia. Também podemos crescer quando lemos um livro, assistimos a um filme, conversamos com um vizinho, pensamos na vida… O contato com o “outro”, com o diferente, é fundamental para romper com preconceitos, uma vez que isso nos tira da zona de conforto, mas viajar não é a única forma de ter esse contato.
E ainda tem o outro lado do “pode”. Não adianta apenas ter contato com algo novo para nos tornarmos imediatamente pessoas melhores. Não é preciso provas estatísticas disso – basta pensar no monte de gente que roda o mundo, mas continua cheio de preconceitos, seja contra negros, gays e pobres, algo tão corriqueiro e até mesmo aceito no Brasil, onde uma parte da população ainda acha que amarrar alguém a um poste é uma forma de justiça – desde que, claro, a pessoa amarrada não seja parte do grupo dominante.
Dizer “eu não tenho preconceito” é uma frase tão boba que sequer pode ser levada em consideração, afinal negar a existência de um discurso construído coletivamente para garantir privilégios a um grupo considerado padrão (no caso do Brasil, homens, brancos, de classe média e cristãos) é uma atitude que referenda preconceitos.
Somos todos mais ou menos preconceituosos. Para quebrar essa forma de pensar é preciso ser aberto aos aprendizados que a vida oferece. “As pessoas viajam para lugares distantes para conhecer, em fascinação, o tipo de gente que elas ignorariam em casa”, escreveu o ucraniano Dagobert Runes. É uma boa ideia quebrar essa lógica e aproveitar todas as lições que a vida nos dá, seja durante uma viagem ou não.
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Meu Deus, é muito bom ler textos com essa clareza, com esses exemplos discordando e evidenciando o que fala.
Muito obrigada!
Feliz que você gostou desse texto, que é tão antigo.
Abraço.