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Atlas: Porto Príncipe, Haiti

O que eu aprendi com o Haiti

*Por Gustavo Azeredo, que esteve no Haiti em 2014.

Sak Pase! Eu estava em Orlando, mas meu voo para o Haiti sairia de Miami pela manhã. Aproveitei que um amigo tem casa na cidade e passei lá para deixar meu computador e parte das minhas coisas. Eu  queria viajar mais leve e não sabia o que esperar do Haiti, já que os órgãos de todos os países desaconselham qualquer tipo de visita ao país. E eu não conhecia absolutamente nada nem ninguém lá.

Passei a noite no aeroporto. Por volta das 5h da manhã começou o check in e na fila eu vi uns três brasileiros que me pareceram ser militares. Conversei com eles. Eram todos da aeronáutica, estavam no Haiti a serviço e haviam tirado uma semana de férias nos Estados Unidos.

Eles se assustaram quando eu disse que ia como turista e me recomendaram ter muito cuidado, que não fosse ao centro da cidade, que não saísse durante a noite, exatamente a mesma conversa de todo mundo. Eu não perdoei e perguntei muito mesmo: Há quanto tempo estavam lá? O que viam no lugar? Como era a situação? Por meio deles fiquei sabendo que os militares brasileiros que estão lá o fazem por escolha própria e passam por um treinamento específico no Brasil, além de ganhar um pouco a mais por isso.

Embora o agente de imigração não falasse inglês – e eu não falasse francês – o processo de entrada no país foi tranquilo. Consegui entender a pergunta sobre propósito da minha visita e respondi: turismo. Mesmo assim ele escreveu “MINUSTAH”, que depois descobri que significa “Missão das Nações Unidas Para Estabilização no Haiti. Mesmo marcando turista no formulário e respondendo verbalmente, ainda assim ele me classificou como um agente da ONU.

ONU no Haiti

Missão da ONU no Haiti

Peguei minha mochila e saí. Ainda na frente do aeroporto, a primeira impressão é impactante. A rua é esburacada e suja, os ônibus estão caindo aos pedaços, mas há também alguns multicoloridos e bem interessantes.

Eu cheguei ao Haiti sem a menor ideia de onde iria me hospedar. E como o país é mal recomendado em termos de segurança, optei por chegar na hora do almoço, porque ainda teria boas horas de luz para procurar um hotel. Sou sensato. 🙂 Depois de procurar em vão por hospedagem por conta própria, voltei ao aeroporto. Esperava encontrar algum estrangeiro para pedir dica de hotel ou pelo menos da melhor região para me hospedar. Dei uma olhada no painel para ver se havia voos na próxima hora. E, para a minha alegria, tinha.

ONU no Haiti

Demorou mais ou menos 25 minutos até chegar um estadunidense atrasado para embarcar. Ele estava apressado, mas deu tempo de me indicar um lugar meio ONG meio hostel chamado Haiti Communitere, onde alguns estrangeiros ficam quando vêm fazer trabalho voluntário no país. Para minha sorte, o local estava a dois quilômetros do aeroporto.

Pelo caminho, eu tive uma pequena amostra do que veria nos próximos dias. Várias caminhonetes importadas brancas, todas novas e com adesivos da ONU – e cada caminhonete levava apenas uma pessoa. Passavam também vários blindados e jipes do exército da ONU, esses carregados de soldados fortemente armados, vestindo coletes à prova de balas, capacete azul, escudos transparentes e exibindo seus fuzis.

A rua é estreita e o tráfego é intenso, então os carros vão devagar. Todos passavam por mim e faziam uma cara como de quem não entendia a situação. Um branco passando ali a pé, com duas mochilas, não era uma visão muito comum. Saí da rua principal e entrei na do hostel, uma rua de terra, ainda mais esburacada e com esgoto correndo solto. A cada carro que passava, eu tinha que acelerar o passo para não tomar um banho.

Não era exatamente um hostel, mas a atmosfera era bem parecida. O diretor-fundador da ONG é um californiano chamado Sam, um cara gente boa e que já esteve em outras partes do mundo, sempre no esquema pós desastre. Dentre eles a Tailândia, em 2004, ajudando na reconstrução de vilas após o tsunami; e no terremoto de Piscac, no Peru, em 2007.

Havia 18 pessoas hospedadas lá. Uma parte estava trabalhando como voluntário em construção e reforma, inclusive do principal hospital do Haiti. Conversei com eles um tempo e depois saí para dar uma volta.

No dia seguinte, o pessoal da ONG serviu um café da manhã com frutas, ovos e pão às 7 da manhã. Vai até as 8h, quando acontece uma reunião diária. A reunião não é obrigatória e dura uns 15 minutos. É descontraída e eles falam sobre os acontecimentos do dia anterior na capital, coisas da ONG e metas para o dia.

Para os recém chegados, pede-se que se apresentem dizendo quem é e o que busca ali. Apresentei-me normalmente e quando disse que era um turista todos ficaram espantados. O Sam, diretor da ONG, disse que eu era o terceiro de que ele tinha notícia – e o primeiro da Haiti Communitere. Pobre do país onde a maioria esmagadora das pessoas está lá para ajudar ou fazer outra coisa que não interessada na cultura e belezas do lugar.

Passado esse momento, fui para a rua. Queria ver logo o centro da cidade, por ser a área mais devastada pelo terremoto. Vesti minha camisa com os nomes de jogadores do Galo (mas que também jogaram pela seleção brasileira) já pensando em uma maior interação na rua. Peguei informações sobre como chegar ao Palácio do Governo, troquei algum dinheiro e fui para a avenida principal.

Já na rua, tomei um tap tap, que são os ônibus bem coloridos, parecidos com os de Cochabamba, na Bolívia. Além das cores vivas, há neles vários rostos de santos, pessoas famosas, jogadores de futebol, inclusive brasileiros, argentinos e frases da bíblia. Dentro do tap tap, todo mundo ficou olhando para mim com cara de curioso. No Haiti, branco anda de carro da ONU, fechado em seu ar condicionado e sem nenhuma interação com o que acontece na rua.

O trajeto foi todo por ruas esburacadas e trânsito bem caótico onde se usa a buzina constantemente e prevalece a lei do mais ousado. Após uns 30 minutos no tap tap, finalmente cheguei ao palácio do governo, que é bem no centro da capital e foi a área mais afetada pelo terremoto de janeiro de 2010.

A primeira impressão é chocante e eu tive um misto de sentimentos. As principais construções estão literalmente no chão. E do palácio não resta nenhuma parede de pé. A catedral que está a um quarteirão dali também foi completamente destruída. No terremoto, além das 200 mil mortes, 3 milhões de pessoas ficaram desabrigadas e foram montando barracas onde podiam. Elas ainda vivem por ali, na rua, no meio de muito lixo. Imagine um país que sempre foi pobre e em que, após um terremoto, 30% das pessoas estão sem casa para morar. Esgoto correndo a céu aberto, adultos sentados no chão e crianças correndo em volta compõem o visual.

Assim que desci do tap tap, vi uma movimentação. Fiquei uns cinco minutos observando o povo falando de forma exaltada com um segurança, mas eu não entendi nada porque eles falavam em creole. Todos me olhavam curiosos e dava para ver as pessoas lendo os nomes dos jogadores na minha camisa. O primeiro é o Ronaldinho Gaúcho, mas está escrito Ronaldo. E essa era a primeira coisa que me falavam: Ronaldo!

protesto no Hairi

Depois de um tempo, um cara me cutucou. Era um haitiano de uns 20 anos que falava inglês. Ele me explicou que aquele protesto era porque o presidente mandou prender um advogado dos direitos humanos que fazia campanha contra ele. Eu nem sabia de protesto e foi então que olhei ao redor e vi a rua cheia de pedras grandes, para impedir o tráfego de veículos, e pneus queimando.

John, o haitiano, me sugeriu sair dali, dizendo que poderia não ser seguro para mim. Eu não entendi bem o motivo, mas comecei a andar. Chegando na esquina, havia pneus queimando, um carro parado no meio da rua faltando uma das rodas e a uns 20 metros um grupo cercou alguns policiais da guarda nacional num beco. Essas pessoas atiravam pedras e os policiais se defendiam como podiam com seus escudos.

protesto no haiti

Eu estava com minha câmera recém comprada e ela é grande, com lente grande, portanto chama bastante a atenção. Acredito que tanto os soldados quanto o povo podem ter imaginado que eu era um jornalista cobrindo os protestos, embora não houvesse ninguém cobrindo nada por ali.

Tirei bastante fotos e depois achei melhor dar um tempo, porque eu já estava muito visado. Nessa mesma praça tem um museu nacional que tinha ar condicionado. E isso seria perfeito, porque a essa hora o calor estava demais. Perguntei ao John se ele já havia ido ao museu e ele me disse que nunca, porque tinha que pagar para entrar. Convidei-o então para ir comigo e paguei sua entrada. Foram 5 dólares para mim e 2 dólares para ele, porque haitiano paga mais barato. Ele ficou muio feliz de poder ir lá pela primeira vez.

museu no haiti

Museu

O museu, embora pequeno, é muito interessante e conta a história do Haiti com ilustrações e textos em creole e francês, que o John foi traduzindo para mim. Um funcionário do museu nos acompanhou e foi explicando toda a história do lugar, desde a parte da revolução dos negros liderados por Jean Jacques Dessalines, que em 1803 consagrou a vitória tornando o Haiti o primeiro país independente das Américas.

Desaline concluiu sua vitória cortando a parte branca da bandeira da França que outrora pairava por ali, deixando apenas o vermelho, representando os mestiços/mulatos, e o azul, representando os negros. Esse foi o primeiro esboço da bandeira do Haiti, e depois atribuíram canhões, coqueiros e outros elementos que compõem a bandeira atual.

Uma peça bem importante do museu é a âncora da Nau Santa Maria, a mesma que aportou na América no século 15 e afundou na baía do Haiti pouco depois. O John acompanhou tudo muito animado e ficou bastante interessado na história do país dele, principalmente na maneira como o guia do museu contava, deixando um ar de que o país tinha sim bons motivos para os haitianos se sentirem orgulhosos.

Despedimo-nos do guia e saímos mais uma vez para ver como estava a rua. No caminho, encontramos um amigo do John. Ambos me explicaram que, no Haiti, os homens se cumprimentam tocando os punhos fechados, ato que significa respeito. É uma nação em que a população descende de guerreiros, por isso é importante demonstrar respeito desde o primeiro instante. No caso de serem amigos, após tocarem os punhos cerrados, eles batem levemente no próprio peito, com o punho ainda fechado. Esse gesto significa amor. Respect and Love.

Já era por volta de 17 horas quando decidi voltar ao hostel. Chegando lá, fui logo ao locker para guardar minha câmera e percebi que quando saí de manhã, eu havia esquecido minha mochila pequena do lado de fora. Dentro dela estava minha câmera Gopro recém comprada, todos os meus documentos e 800 dólares em dinheiro. Na hora meu coração disparou, mas eu chequei e estava tudo lá, intacto.

Passado o susto, tive uma sensação muito boa, de estar num país onde o salário mínimo é 40 dólares por mês e ainda assim a maior parte da população é desempregada, mas minhas coisas estavam todas ali sem que ninguém tivesse tocado. A communitere faz de fato um bom trabalho com as pessoas que trabalham lá.

Jantar delícia, passei uma noite bem legal com o pessoal. Troquei uma ideia com o Sam e ele me chamou para ir com eles pras montanhas no dia seguinte à noite. Claro, aceitei na hora, estava mesmo querendo ver algo diferente da capital e tirar umas fotos de alguma coisa bonita.

A Cozinha do Inferno e o Mercado Vodu

Antes da viagem para as montanhas, aproveitei para conhecer dois lugares que eu queria muito visitar: o Mercado Venezuela e o Mercado Vodu. O Mercado Venezuela é na pior parte do centro, na parte mais bagunçada, mais suja, onde o esgoto flui livremente no meio da rua. E as barracas são dispostas ali, na água mesmo. Barraca de roupa, de peça de eletrônicos e também barracas de comida. Esse lugar é o mais sujo que eu já estive na vida, e também o mais triste.

O lugar é apelidado de Cozinha do Inferno, e não poderia ter um nome diferente. São pessoas passando fome e despidas de qualquer sombra de dignidade, porque nada é mais urgente que comer e se manter vivo. As pessoas comem lixo, comida estragada e também um biscoito feito de barro. A maior urgência dessas pessoas é comida, não há espaço para pensar em outra coisa. Não paira sobre a cabeça delas nenhum tipo de sonho, de futuro ou nada. Não dá para pensar em escola ali… “quem tem fome tem pressa”.

mercado venezuela, Haiti

Eu fui advertido por um militar, ainda em Miami, sobre esse lugar. Ele me disse que, quando dava dinheiro para alguma pessoa, ele olhava bastante antes, porque sabia que logo depois alguém viria tentar tomar. A despeito disso, não me senti ameaçado em nenhum momento. As pessoas que vi estavam catatônicas e fechadas no mundo delas, acho que nem me viram.

Não há muito o que fazer por ali, então fui para o mercado vodu. Esse lugar é mais limpo (na medida do possível) e lá algumas pessoas falam inglês. Foi legal dar uma quebrada no clima e ver outras coisas.

Apesar de ser um país bastante católico, diz-se que 100% das pessoas pratica o vodu no Haiti. Nós estamos acostumados a entender Vodu de uma maneira negativa, e na verdade não é assim. O mercado se parece com as lojinhas que a gente tem no Brasil, vendendo velas, bebidas, oferendas pras entidades, algumas imagens mais interessantes e outras bem impactantes.

Tem imagem de neném com chifre no meio da testa, imagens relacionadas a parto e tem alguns bonecos, que foram os que eu achei mais fortes. São bonecos de mais ou menos 1 metro de altura. A cabeça é um crânio humano de verdade, revestido com couro. Eles vão ao cemitério e simplesmente recolhem ossos e fazem os bonecos.

Porto Príncipe, Haiti

Infelizmente os responsáveis pelas lojas que vendiam esses bonecos não falavam inglês e eu saí sem entender os propósitos, mas achei interessante. Eu vi também gatos amarrados pelo pescoço. Faz parte do cardápio e nem tem conotação religiosa envolvida. No mercado tem artesanato também, muita coisa legal e dá vontade de comprar tudo (menos a parte do vodu).

Vida no interior do Haiti

Voltei para o hostel por volta das 17h para pegar o jantar e depois partirmos para Furcy, pequena cidade nas montanhas e a 2 horas de Porto Príncipe. No caminho comprei minha passagem conhecer Cap-Haitien, dois dias depois.

Chegamos cansados. Então foram umas duas cervejas e a noite ficou por aí mesmo. No dia seguinte, finalmente pude ver quão bonito era o lugar. Cadeias de montanhas maravilhosas e uma vegetação bem verde. Fomos passear em uma espécie de buggy 4×4 que o Sam tem por lá.

furcy, montanhas do haiti

Foi um longo dia passeando por visuais maravilhosos entre montanhas e rios, culminando em cavernas e grutas muito bonitas. De vez em quando passávamos por vilas onde as pessoas nos olhavam curiosas, sorriam e acenavam.

Paramos numa dessas vilas para comprar comida e bebida e havia uns meninos jogando futebol na rua. Eu não perco oportunidade e me meti no meio sem nem pedir, roubei a bola, fiz uma gracinha e eles gostaram, então continuei. Futebol é linguagem universal, não precisa tradutor. Os meninos se divertiam, e eu também achei tudo ótimo. Os estadunidenses que estavam comigo não se importaram em esperar e ficaram lá rindo da gente, até tiraram algumas fotos.

futebol no Haiti

Passado um tempo, paramos o futebol e conversamos um pouco do jeito que deu. Eles adoraram saber que eu era brasileiro e citaram uma centena de nomes de jogadores brasileiros. É clichê, mas abre porta, facilita a conexão com as pessoas e no fim é o que eu estou buscando. Apenas lamentei profundamente não ter dado mais atenção às aulas de francês que a minha avó insistia em me dar.

Seguimos com o tour e paramos em uma cachoeira muito bonita, onde tomamos banho para amenizar o calor. Depois esticamos até uma gruta, onde fizemos rapel para ver as formações no chão. O que mais me chamou atenção foi como a qualidade de vida das pessoas melhora radicalmente saindo da capital. No interior elas têm a terra para trabalhar, têm rios com peixes, hortas e não falta comida para ninguém.

Furcy Gruta, Haiti

No dia seguinte o tempo estava fechado e parecia que ia chover, então decidimos voltar logo para Porto Príncipe.

Viagem para Cap-Haitien

Acordei cedo na segunda-feira e peguei meu ônibus em direção a Cap-Haitien, cidade cinco horas ao norte. Meu tempo no Haiti estava acabando, então teria que me mover logo para conhecer outros lugares.

Após uma hora de viagem, o caminho para Cap-Haitien fica muito bonito, apesar da estrada ser ruim a maior parte do percurso. De um lado, montanhas bem verdes. Do outro, um mar com vários tons de azul. A areia das praias é muito branca e me fez pensar como é que esse país não é um destino de turismo.

Bem menor e menos tumultuada que Porto Príncipe, eu achei Cap-Haitien interessante no início, mas depois ficou parecendo só mais uma cidade grande. A cidade é um porto importante, então tem seu charme, mas não era o que eu estava buscando.

Peguei um mototáxi e segui para Labadie, uma vila de pescadores. Meia hora na garupa da moto e cheguei ao paraíso. Um lugar tranquilo, praia maravilhosa com água verde transparente e rochas calcárias brotando do mar.

Labadie, Haiti

Já na praia, conheci o barqueiro Carlos e dei preferência para ele em todas as travessias que fiz. Ele me deixou numa pousada bem honesta, onde negociei o preço por 20 dólares a noite. Larguei minhas coisas e perguntei se teriam um campo de futebol na vila. Claro que tinham. Calcei minha chuteira, vesti minha camisa do Brasil amarelinha e fui direto para lá.

No caminho passei por mais umas três pessoas com camisas do Brasil e todos sorriam, alguns até me seguiram. Chegando no campo, pedi para jogar e deixaram. Jogamos por umas 2 horas e depois ficamos um tempo lá conversando.

Nessa vila muitas pessoas falam inglês, porque trabalham em cruzeiros que passam por ali. Eles me contaram que na praia onde tomei o barco para chegar até ali, há um pedaço que é uma praia particular da Royal Caribean, empresa que organiza cruzeiros pelo mundo inteiro. Segundo eles, há bem pouco tempo a empresa não contava aos passageiros que desciam na praia que ali era o Haiti. Eles apenas diziam que era Spaniola, uma ilha no Caribe.

labadie, viagem no haiti

Já escurecia e eu estava morrendo de fome, então fiz o caminho de volta para a pousada. Quando cheguei, estava lá o dono, que é casado com uma brasileira, grata surpresa. Ele me apresentou aos seus vizinhos e passamos a noite tomando cerveja e conversando.

Infelizmente eu já estava no final de viagem pelo Haiti e ficaria apenas duas noites na vila, mas seus amigos me disseram que é tradição sair só os homens para pescar e depois cozinhar os peixes para suas mulheres. Eles me convidaram para ir junto na manhã seguinte. E eu fui. Pescamos com linha e aprendi a pescar com tarrafa. Conseguimos uma quantidade boa de peixes e o jantar estava garantido.

comida no Haiti

Deixamos os peixes para a noite e o Nougues, o dono da pousada, me levou a Millot, uma cidade vizinha onde fica a Citadela, um dos cartões-postais do país e programa imperdível. Estacionamos o carro e subimos até o topo da citadela, que é uma fortaleza muito bem preservada e com uma visão maravilhosa de toda a região.

Viajar para o Haiti

Depois, voltamos para a vila. Preparamos o peixe com limão e um pouco de sal e adicionamos umas ervas e mais um pouco de pimenta. Envolvemos os peixes em papel alumínio e pusemos na grelha. No rádio tocava zouk e kompa, um estilo de música haitiano que é meio salsa e meio zouk.

Não demorou muito até a comida ficar pronta e logo as esposas chegaram para comermos todos juntos. Foi mais uma dessas noites bem legais, com fogueira e um céu cheio de estrelas. Ouvi muita história deles e dos antepassados. Eles ainda guardam coisas como correntes e objetos que eram usados para prender escravos. São os mesmos objetos que a gente vê em qualquer museu, mas ali era o cara falando: “meu bisavô ficou preso nessa corrente aqui até o dia em que ele se rebelou e se fez livre”. É bonito ver isso, me marcou bastante.

Eu teria passado facilmente uma semana nessa vila, mas infelizmente já era hora de voltar a Porto Príncipe, pois eu iria embora no dia seguinte. Eu devo ter chegado em Porto Príncipe com os olhos arregalados, porque todos comentaram que eu parecia bem feliz.

A festa dos mortos

Comentei então que iria embora no dia seguinte, mas eles se espantaram, porque era justamente o dia do Halloween e há uma grande festa lá nessa data. E no dia seguinte ainda tinha a festa dos mortos no Haiti, uma festa muito grande, com várias cerimônias vodus no cemitério. E eu definitivamente não ia querer perder isso. Troquei meu voo e fiquei mais três dias no Haiti.

No dia seguinte, depois da festa de Halloween na noite anterior, acordei cedo e saí do hostel. Cheguei na região central e me dirigi logo para o cemitério. Era uma multidão como eu ainda não havia visto no país. E todo mundo com cara alegre, um verdadeiro carnaval.

Vi várias pessoas tocando instrumentos e várias dançando, numa espécie de transe. Vi bastante gente incorporada por lá e algumas outras tomando conta. Entrei no cemitério – é imenso e está bastante quebrado. Desde o terremoto, o cemitério ficou largado na escala de prioridades. Várias sepulturas tombaram e se misturaram com outras, ficando difícil saber o que é resto mortal de quem. Também é possível ver alguns ossos pelo chão. E algumas ossadas não tinham crânio, acho que daí vem as cabeças dos bonecos.

cerimonia-vodu-cemiterio

Eu me senti confortável o tempo todo no Haiti em relação à segurança, mas dentro do cemitério pela primeira vez eu tive uma sensação diferente. Talvez porque dessa vez era muito mais gente e as pessoas todas me pareceram em um estado muito alterado. O ambiente parecia diferente de tudo que eu vi antes e eu estava em um lugar fechado. De qualquer forma, foi algo momentâneo e em pouco tempo eu já estava tranquilo.

Já as pessoas ficavam mais e mais alteradas. Álcool, os rituais, fumavam coisas e a música deixava todo mundo meio que em transe. Vi um pessoal dançando livremente e o movimento do corpo deles era intenso. Não sei explicar, mas me pareceu bem visceral, algo que vinha de dentro.

Tinha um cara com um crânio na mão, que misturava bebida e bebia no crânio mesmo. Ele não tinha uma perna, então passava a maior parte do tempo sentado no chão, misturando lama com a bebida, e girava a caveira sobre a cabeça e colocava no chão de novo.

Nesse lugar é totalmente tranquilo tirar fotos, ninguém se opôs ou fez cara feia, então bati várias e fiz alguns vídeos também. Aproveitei para conversar com algumas pessoas, mas preferi passar a maior parte do tempo sozinho e observando o que acontecia. Após várias horas no cemitério, voltei para o hostel e passei uma noite tranquila conversando com as pessoas e me despedindo.

P.S: Depois de um tempo vi que o povo daquele programa “Não Conta Lá em Casa” esteve no Haiti também. E vi videos dos caras andando de colete à prova de balas. Isso é muita vontade deles de se sentirem como se tivessem feito algo perigoso, mas fiquei triste, porque presta um enorme desserviço ao país. Assim as pessoas não vão lá, com medo do Haiti ser uma praça de guerra. Tem muita desgraça lá sim, mas muita coisa bonita e interessante para ver também.

millot, haiti

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37 comentários sobre o texto “O que eu aprendi com o Haiti

  1. Gustavo, maravilhoso seu relato. Pública os vídeos, do cemitério, e compartilha com a gente, me pareceu um ritual muito interessante.

  2. Que relato maravilhoso!!!
    Gustavo está de parabéns por desmistificar mais um país que 99% das pessoas jamais pensariam em visitar!!

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