No escritório onde trabalhávamos na Índia, o Rafa podia escolher os temas que mais lhe interessavam para escrever. Eu e a Luíza tínhamos que nos contentar com os assuntos que nosso chefe achasse pertinente para nós duas. O Rafa foi perguntado se estava feliz com suas tarefas, mas aparentemente o bem-estar das estagiárias não era assim tão importante, porque ninguém nunca se importou em saber o que pensávamos.
Essa não foi a primeira vez que eu sofri discriminação por ser mulher em um ambiente de trabalho, mas foi a primeira vez que realmente me dei conta disso e me revoltei com esse tipo de tratamento. Como mulher, eu passei a vida inteira sendo objetificada, julgada, criticada, tratada como inferior. Eu passei a vida inteira lidando com assédio nas ruas, na escola, no escritório, escutei piadas de mau gosto, fui reprimida e destratada. Nenhuma dessas experiências, no entanto, fortaleceu tanto o meu feminismo e minha urgência por igualdade quanto viajar. E, dentro desse contexto, a Índia teve um papel importantíssimo.

Não que o conceito fosse completamente novo para mim. Eu me considero feminista desde criancinha. Na adolescência, costumava dizer que defendia os frascos e comprimidos, porque não me calava diante de nenhuma injustiça. Era comum que eu entrasse em longas discussões com meus pais, amigos e professores sobre as diferenças de tratamento para meninos e meninas, mesmo que muita gente me considerasse um pé no saco por isso. Mas qual adolescente não é chato e dono da razão, não é mesmo?
No entanto, eu nunca antes havia parado para pensar de verdade em como o machismo está intricado no nosso dia a dia até ser exposta a situações com as quais eu não estava acostumada. Em outras palavras, ao sair da minha zona de conforto e experienciar o machismo de uma forma diferente da que foi naturalizada por mim durante toda a minha vida, eu tive a oportunidade de refletir e perceber melhor os mecanismos da desigualdade de gênero não apenas na Índia, na Malásia ou na Tailândia, mas também na minha própria casa.

O abrir de olhos que vivi em minha volta ao mundo foi bem parecido com o que tive ao me deparar com o racismo na África do Sul e, com ajuda dele, conseguir enxergar melhor o racismo no Brasil. Na Índia, o fato de que os médicos não podiam revelar o sexo do bebê me fez refletir sobre feminicídio. As encaradas nada discretas, os toques inapropriados de desconhecidos nas ruas e as fotografias tiradas sem autorização me tornaram intolerantes quanto às cantadas que recebemos no Brasil e a objetificação do meu corpo. O fato de eu não poder sair sozinha nem para ir ao mercado me fez questionar minha própria liberdade e segurança quando ando nas ruas da minha cidade.
Na Tailândia, quando visitamos as mulheres Kayan – ou mulheres-girafa, como são mais conhecidas – tecer críticas aos acessórios de metal usados em torno do pescoço foi fácil. Afinal, o uso das argolas deforma a caixa torácica e traz graves problemas de coluna a troco de uma questão estética – cultural sim, mas essencialmente estética.
O que eu descobri logo depois é que isso não está assim tão distante do que acontece na nossa cultura. Quantas mulheres vocês conhecem que já comprometeram a saúde e o bem-estar para parecerem mais bonitas? Dietas absurdas, anorexia, lipoaspirações que deram errado, outras cirurgias invasivas e até o inocente uso do salto alto que, assim como as argolas, podem ferrar com nossas colunas.

Esse não é um movimento fácil, contudo. É preciso desconstruir paradigmas que nos acompanharam a vida inteira, traçar paralelos, evitar ao máximo classificar as outras culturas como arcaicas ou extremistas. Levou meses, talvez anos, para que as reflexões causadas pelas minhas experiências na estrada amadurecessem. Hoje estou feliz que tenha sido assim.
Mas não é só isso
Nós já dissemos aqui, mas existe um motivo pelo qual posts com títulos como “É seguro para mulheres viajarem sozinhas” não são uma raridade na internet. E o motivo é que essa pergunta ainda importa. Ainda causa estranheza que uma mulher possa ser tão independente a ponto de mergulhar no novo sem companhia. Ainda soa estranho que algumas de nós não tenhamos o menor medo de colocar a mochila nas costas. Ainda é comum que queiram nos esconder dentro de casa.

E esse discurso está tão enraizado que muitas de nós começamos a acreditar que não somos mesmo capazes de um monte de coisas, inclusive viajar. Que é perigoso, que temos medo, que a aventura é algo para quem nasceu com outro gênero.
Eu tive a sorte de ser criada por uma mulher independente que sempre me ensinou a ser assim também. Quando eu viajei para o exterior pela primeira vez, fui sozinha e só recebi incentivos. Tive medo, mas fui com medo mesmo, porque minha vontade de conhecer o mundo era maior que qualquer bicho-papão imaginário. E foi aí que comecei a descobrir que podia me virar em qualquer situação e que eu era mais forte que pensava.
Leia também: 7 relatos de mulheres para te inspirar a viajar sozinha
Viajar me tornou feminista porque me ajudou a refletir sobre as desigualdades, me mostrou outras facetas do machismo, me deixou com raiva – muita raiva – diante das injustiças e me colocou em situações desconfortáveis, mas também porque me ajudou a descobrir onde estava minha força.
E, uma vez que você não se ajusta mais ao estereótipo de gênero, uma vez que você deixa de se enxergar como o sexo frágil, uma vez que você adquire autoestima suficiente para ter certeza de que você é capaz de qualquer coisa a qual você se propõe, é difícil deixar que alguém te diga o contrário.
Olá Natália! Super bacana esse post!
Fui comemorar meu aniversário de 40 anos em Paris e por lá não senti isso.
Alguns amigos e familiares me chamaram de louca, perguntavam se eu não tinha medo, essas coisas. Confesso que senti medo uns 15 dias antes da viagem, mas não por viajar sozinha e que pudesse acontecer algo, mas sim porque moro em uma cidade pequena do interior do Paraná e descobri que para tinha 6 milhões de habitantes, ou seja, uma cidade enorme para ficar uma semana!!!
Marcolina, sim, sempre vão estranhar que a gente seja independe e resolvida! Mas o bom é que depois de um tempo a gente pare de se importar, né?
Abraços
Desculpem! o “para” aí em cima é Paris! Rsrs
Muito bacana o texto!!
Obrigada, Amanda!
Lindo texto, de verdade.
Me senti nele. Fui pra Índia sozinha ano passado fazer um intercâmbio pela Aiesec também e entendo TUDO o que você escreveu. E aqui no Brasil ainda tem o agravante das mulheres serem desunidas. Lá na Índia, pelo menos por onde passei, a mulherada era super unida rs Se levantavam do ônibus, por exemplo, sempre chamavam alguma mulher que estava em pé para ocupar o lugar.
Agora estou indo pro Chile, Argentina e Uruguai fazer outro intercâmbio e mochilar e ainda existe muita estranheza quando falo que vou sozinha.
É o que sempre digo: ”E se der medo? Vai com medo mesmo.”
Bjss
Obrigada, Maria! A Índia transforma a gente, não é mesmo?
Obrigada por comentar e volte sempre!
Amei o post! Bastante inspirador 🙂
Obrigada Lígia! 🙂
Fiz minha primeira viagem ao exterior sozinha em março deste ano! E com esse texto percebi várias coisas desde a minha família que foi totalmente contra por eu ser mulher e está viajando sozinha e na imigração em Amsterdã o policial perguntou porque eu estava viajando sozinha e como minha família tinha deixado isso o.O E na hora do nervosismo respondi normal e tal e agora me toquei o quanto isso está enraizado no mundo(infelizmente), mas estamos viemos para mudar isso e com certeza as nossas filhas e netas viverão um mundo menos desigual!
Beijooo
A coisa é tão natural pra gente que nem nos damos conta, Izabella, também foi assim comigo. Vamos torcer para que as gerações futuras não passem por isso.
Abraços!
Nat, que texto incrível!
Também comecei a me descobrir feminista depois das minhas viagens, com um incentivo da internet – em que a gente encontra textos maravilhosos de meninas que também não se calam mais, como você.
Muitas vezes a gente tende a acreditar que a sujeira tá só dentro da nossa casa, mas o machismo é um problema mundial. Seja na Hungria com um bêbado enfiando a mão entre as suas pernas ou no Vietnã com os garçons entregando a conta somente para o seu namorado (minhas experiências mais recentes).
Que bom que nós mulheres estamos nos juntando pra fazer barulho, e a diferença, por esse mundão! Boa sorte nas suas andanças 🙂
EI Gabriela! Obrigada por comentar, fazendo barulho e unidas somos mais fortes!
É por esses artigos com uma visão de justiça social e econômica que eu amo esse blog e acompanho sempre 🙂 Obrigada por trazerem esses temas à tona!
Carina, obrigada pelo comentário e elogios. Esses são os textos que mais gostamos de fazer.
Abraços!
Um dos textos mais legais que já li esse ano!! É impressionante como o machismo ainda é velado no Brasil.
Patrícia, obrigada! Fico feliz que tenha gostado!
Oi Natália adorei seu post.
Recentemente comecei meu sonho de conhecer o mundo , vinha adiando muito pelo medo de viajar sozinha. Sou feminista, acredito na igualdade de gênero, mas infelizmente adiava meu sonho porque era eu que tinha que “me cuidar”. Fiz a primeira viagem só e já estou me preparando para a segunda. Não foi fácil, até mesmo o fiscal da imigração me perguntou porque “meu pai tinha me deixado viajar sozinha” e o ” o que uma mulher fazia viajando sozinha”. Como alguém comentou anteriormente, também sou de uma área dominada por homens e todo o dia é um sexismo diferente. Tá tão enraizado que acham que é apenas “piada” e não machismo. Obrigada pelo post, obrigada por mostrar que nós podemos conquistar e viajar o mundo, e não deixarmos preconceitos alheios nos pararem.
Olá Rafa, que bom que você venceu o medo e viajou! É uma experiência empoderadora. Espero que muitas viagens mais venham.
Abraços!
Machismo é horrível, responsável por muitas mortes e por um sofrimento em escala global. Igualidade de gênero é urgente e precisa ser debatida constantemente, não só pelas mulheres, mas também pelos homens (os privilegiados). Homem também pode ser feminista! O problema é que muitos (não só homens, mulheres também) confundem o termo feminista com femista. Femismo é o conjunto de ideias que considera a mulher como um ser superior ao homem. Feminismo é um movimento que luta pela igualdade de direitos entre mulheres e homem.
Fico muito feliz quando vejos homens com uma percepção assim sobre o Feminismo, Felipe! A maioria fica na defensiva assim que tocamos no assunto! Abraços!