O azul não existia na antiguidade. Não é que o céu e o mar tenham mudado de coloração ao longo dos anos. A questão é que nenhuma das línguas antigas, nem o grego, nem o chinês, nem o latim, nem o hebraico, nenhuma delas tinha inventado uma palavra para designar o azul. Não sendo capazes de descrever essa cor, as pessoas não tinham como distingui-la. Para falar das coisas que hoje, para nós, são “azuis, óbvio”, os antigos usavam o verde, o violeta e até o vinho.
Há uma tribo indígena na Amazônia que come cobra. Ou pelo menos é assim que uma pessoa como eu e você descreveria a dieta deles. Para eles, no entanto, essa afirmação não tem sentido. Não compartilhando da mesma classificação biológica das espécies que aprendemos na escola, eles usam a mesma palavra para descrever serpentes e peixes e, como peixes, as comem. Não há diferença entre os dois tipos de animais.
Parece estranho? E se lembrarmos que as primeiras classificações de seres dividiam tudo o que há de vivo neste mundo em apenas dois grupos: perigosos e não perigosos? E que, mais tarde, Aristóteles colocou tudo o que se movia no reino Animal e tudo que era imóvel no Vegetal? Aí talvez a gente chegue à conclusão de que as palavras répteis e peixes são apenas uma convenção social adotada agora e não uma verdade absoluta da natureza.
Vai um peixinho?
Até os conceitos de gênero são construídos socialmente. Embora a gente possa afirmar que existem dois sexos biológicos – macho ou fêmea (três, com os intersexuais) -, os gêneros – ser homem ou mulher – e os papéis sociais atribuídos a eles são categorizações culturais. A prova disso é que o que se espera de um homem ou de uma mulher na nossa sociedade não é a mesma coisa que se espera nas pequenas comunidades matrilienares que ainda existem na Índia, porque lá a atribuição dos papéis de gênero ocorre de forma diferente.
Ou lá nas tribos norte-americanas que não adotavam apenas dois gêneros, baseados nas características biológicas, mas também diversas outras identidades, conhecidas como gêneros não-ocidentais. Se tivesse nascido em uma dessas tribos, você poderia ser um homem, uma mulher ou um two-spirit. Há ainda culturas que não designavam nenhum gênero a seus membros e, portanto, essa ladainha de mulher isso, homem aquilo, seria simplesmente impossível de ocorrer em um lugar desses.
Transexual dança em festival na Índia. No país elas são tratados como sagradas, como um terceiro gênero.
E as classificações que usamos hoje não são definitivas. Nós tendemos a pensar que a verdade que conhecemos, que aprendemos na escola e que faz parte do nosso repertório é absoluta, imutável, quase sagrada. Como assim você está me dizendo que pode ser que cobra não seja um réptil para sempre? Ou que uma pessoa do sexo feminino não nasce mulher, mas aprende a ser uma (olá, Simone de Beauvoir!)?
Assim como já foi diferente no passado ou ainda é em outras culturas, novas classificações de qualquer coisa podem surgir e se difundir, sendo adotadas pela sociedade de acordo com as necessidades daquele momento histórico e, de quebra, transformando a forma como vemos e interpretamos o mundo. Afinal, Plutão é um planeta ou não? A forma como decidimos chamá-lo não muda o fato de que o astro está lá, nos confins gelados de nossa galáxia, girando em sua órbita preguiçosa, alheio aos debates que inflama no vizinho distante. Mas muda, sim, a forma como o vemos e interpretamos sua presença ali.
Todos esses exemplos, por mais malucos que pareçam, são só uma prova de que a forma como enxergamos, categorizamos e interpretamos a realidade em nossa volta é sempre contaminada por toda a bagagem cultural que carregamos. Desconstruir esse tipo de conceito pode dar um nó na cabeça de muita gente, em especial de quem não está acostumado a pensar fora da própria caixinha.
As estruturas de classificação e interpretação que aprendemos desde que nascemos estão tão enterradas no fundo da nossa mente que muitas vezes nos parecem naturais. Mas elas são apenas uma verdade, a nossa verdade. No mundo há centenas, milhares de outras.
Nada é o que é porque sim e ponto final. Há sempre uma história, um motivo por trás da criação desses conceitos. Entendê-los pode nos ajudar a lidar melhor com o diferente e com as mudanças na nossa própria sociedade. Muitas vezes, o medo dessas coisas é apenas uma incapacidade (ou falta de vontade) de dar um passo pro lado e enxergar as coisas por outro viés. Afinal, lá no passado, quando o azul não era uma cor, Homero disse que o mar era cor de vinho. Quem sou eu para discordar?
Fotos: Shutterstock
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Exatamente! Ótima reflexão a sua!
É o que sempre falo pra todos. Nosso vocabulário nos diz muito sobre nós, mas diz mais ainda sobre as outras coisas/pessoas.
Bruno, a nossa língua materna é a nossa principal ferramenta de interpretação do mundo, não surpreende que ela diga tanto sobre nós mesmos.
Abraços e obrigada por comentar.
Incrível Natália!!!
Parabéns!!!
Que ‘tiro’ certeiro!!!
Um abraço,
Ana
Obrigada, Ana! 🙂
Oi Natália, como me faz bem ler essas palavras de conhecimento e aprendizado,e minha ideia de viagem é por esse pensamento também, sentir como sentem, ver como veem , falar com sentido a cada viagem…..gostei muito!!!
Ei Renata, obrigada pelo comentário! 🙂
Fico feliz que tenha gostado do texto…
Abraços!
Caramba Natália, você fez com que todas as mitocôndrias da minhas células se abrissem ao ler esse texto. Além de muito didático porque coloca a situação cronologicamente com analogias e exemplos muito convenientes, é esclarecedor e um grande catalisador para abrir a cabeça de muita gente que está sempre buscando entender melhor esse mundão em que vivemos. Fica bem claro pram mim após ler seu belo texto que o mal da humanidade está mesmo na contaminação que carregamos de toda nossa bagagem cultural, recheada de “verdades”.
Parabéns pela grande contribuição a humanidade! 🙂
Breno! hahah que legal, fico feliz que o texto tenha mexido com as suas mitocôndrias.
Abraços e obrigada por comentar!
Conversava sobre “verdades” esses dias com uma colega de trabalho. Não conseguimos chegar ao que, na verdade, seria uma “verdade” absoluta.
Padrões, convenções, crenças, tudo isso varia de acordo com a geografia, cultura, etnia, temporalidade, circunstância ou conveniência.
É errado roubar. Mas o conceito de roubo não é absoluto.
Não matarás… a não ser que seja em legítima defesa ou que você vivesse no século XVII e fosse desafiado para um duelo, ou ainda que, sendo boxer, tenha desferido um soco fortíssimo e letal no oponente… ou viva em algumas culturas onde a lei prevê a pena de morte.
São muitas as variáveis, tornando impossível determinar com exatidão o que pode e o que não pode.
E o pior é que, devido a essas imprecisões, provocamos desavenças, por vezes com nós mesmos,e, junto com elas, a infelicidade.
Talvez fôssemos mais felizes se aprendêssemos a arte da condescendência, da empatia, da flexibilidade e do amor.
Reny, é bem por aí. Temos que ter muito cuidado antes de saís bradando nossas verdades por aí.
Abraços!