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Atlas: Brasil

O Brasil é mais que o sudeste

Cresci no Leblon, mas só pela tela da TV. Também tenho um pezinho em Jardins e outros bairros da Zona Oeste de São Paulo, mas só pisei na capital paulista aos 23 anos. É que as novelas brasileiras, aclamadas em todo o mundo, mostram mais o eixo Rio-São Paulo que o restante do Brasil.  Como minha infância – e a de tantos outros brasileiros, principalmente no período jurássico, digo, pré-internet –  foi na frente da TV, é claro que cresci no meio de uma ponte área televisiva.

E não é só com as novelas. A mesma coisa acontece com outras produções culturais, frequentemente focadas no eixo Rio-São Paulo. E também no esporte, nos jornais e até nos portais de notícias. Entre na home de qualquer site de notícias nacionais. É comum que um acontecimento local, como uma retenção no trânsito de São Paulo, tenha destaque. O mesmo não acontece se o engarrafamento for em Fortaleza, Belém, ou Porto Alegre.

viver sem carro

São Paulo

Há uma espiral que faz com que São Paulo e Rio de Janeiro tenham mais espaço na mídia – e por consequência no imaginário coletivo – que o restante do país. E isso se explica de forma simples: são nossas duas maiores cidades, nossos dois polos econômicos mais importantes e os lugares que sediam nossas principais empresas de mídia.

Minas Gerais, minha terra natal, vez por outra também é tema de alguma novela, mas quase sempre o enredo é de época. Raras, se é que já existiram, são as famílias de novela que vivem na Savassi, em Belo Horizonte, e passam por problemas contemporâneos. Raros são os filmes que se passam nos limites da Avenida do Contorno.

Belo Horizonte

Belo Horizonte

E, para complicar ainda mais a questão, o que dizer de Vitória, no Espírito Santo, um estado magnífico, com cultura e belezas únicas, mas que muitas vezes é esquecido, mesmo fazendo parte do sudeste? Ou de partes das próprias cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, normalmente mais pobres e periféricas, que nunca são representadas por nossa indústria cultural? O Brasil mostrado nas telas sequer é limitado a duas cidades. É limitado a poucos bairros de duas cidades.

A questão aqui não é lamentar este fato, mas entender quais as consequências dele. É normal que pensemos que o Brasil, país gigantesco e dono de uma das maiores diversidades culturais do mundo, seja tão restrito como nosso próprio umbigo. E perceber essas diferenças não é fácil – eu só notei quando coloquei uma mochila nas costas e resolvi viajar.

Ilha do Combu, Belém

Belém, no Pará

Notei o tamanho do Brasil quando percorri as ruas de Belém, no Pará, encantado com os sabores da culinária amazônica, com as cores do Ver-o-Peso, maior mercado de rua da América Latina, e com rios que parecem mar. Da mesma forma que milhares de brasileiros se deslocam, todos os dias, por rodoviais, na Amazônia esse deslocamento é feito de barco, por alguns dos mais importantes rios do planeta. Todo dia milhares de brasileiros acordam, escovam os dentes, fazem a mala e iniciam uma viagem de dias por rios amazônicos. Por rios brasileiros.

Ou pelos trilhos brasileiros? Se o transporte ferroviário de passageiros é deficiente no Brasil, muitos se locomovem assim pelas linhas que totalizam quase 28 mil quilômetros, segundo dados da Biblioteca da CIA. Todos os dias, cerca de duas mil pessoas usam o trem para se deslocar pela Estrada de Ferro Carajás, que passa por 25 cidades e liga os estados do Pará e do Maranhão.

Ilha do Marajó no Pará

Ilha do Marajó, Pará

E milhões de brasileiros viajam, todos os anos, pela Estrada de Ferro Vitória a Minas, que há mais de 100 anos é usada como meio de ligação entre as capitais do Espírito Santo e de Minas Gerais. Trilhos que passam por 42 cidades, alterando a vida em cada uma delas, e percorrem 664 quilômetros. Já pensou em morar perto de uma linha de trem interestadual e ouvir, toda manhã, a chegada do trem que traz passageiros do estado vizinho? Essa é minha vida.

A vida também tem suas diferenças no nordeste, que abriga alguns dos municípios mais pobres do país, mas também grandes empresas, grandes universidades e milhões de brasileiros que têm um monte de semelhanças com os moradores do eixo Rio-São Paulo. E um monte de diferenças. A começar pelo sotaque, que dá vontade de correr para o nordeste e não sair de lá. Culinária única, diferenças na forma de levar a vida e outros problemas.

Maragogi, Alagoas

Maragogi, Alagoas

Agora pegue um ônibus para o sul. Passe por Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre. Viaje pelo interior dos estados – vá até a fronteira com Argentina, Uruguai ou Paraguai. Tome um mate e veja o pôr do sol no Guaíba, em Porto Alegre, ou viva o dia a dia de uma das muitas cidades das colônias de imigrantes europeus que se espalham pelo sul do país. Novos sotaques, novos sabores, novas formas de encarar a vida.

Vista de Porto Alegre

Porto Alegre

E falta falar do Mato Grosso, do Acre, de Roraima, de Goiás e de todos estados do Brasil. São milhões de formas de viver, problemas completamente diferentes em cada lugar – e ao mesmo tempo esse monte de semelhanças que faz com que todos sejamos parecidos em alguma coisa.

E se viajar é uma boa forma de conhecer o país, certamente não é a única. Você pode fazer o mesmo lendo livros de regiões diferentes da sua, buscando na internet por produções culturais de outras áreas ou conversando com quem é de outros lugares. Ao encarar o diferente, viajamos, mesmo sem sair de casa.

Brasil é mais que o sudeste

São João da Cardosa, vila do interior do Maranhão

O Brasil vai além do sudeste, vai além do eixo Rio-São Paulo. E Rio e São Paulo vão além de Jardins, Pinheiros, Leblon e Ipanema. É claro que isso é óbvio, mas é fácil esquecer. Passei a fazer um exercício constante: toda vez que me deparo com alguma grande certeza, seja um problema, um ponto de vista ou um desejo, penso antes de generalizar e dizer que “no Brasil é assim”.

Pode ser que seja. Mas pode ser também que seja assim somente no nosso próprio quintal. E que o Brasil seja isso, o oposto e muito mais.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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12 comentários sobre o texto “O Brasil é mais que o sudeste

  1. Achei excelente seu texto ! Você abordou um tema ao qual eu várias vezes me refiro , até com um pouco de indignação ! Mesmo nos momentos de falar sobre o ” tempo ” nos jornais ,a referência é na maioria das vezes , sobre o que acontece no sudeste , e sul ” maravilha … como se isso fosse absoluto num país desta dimensão … sou M. Edna , paulista paulistana , ja morei na amazonia , no sul , no sudeste e há 30 anos moro no nordeste .
    Parabéns pelo blog ,pois além das inteligentes dicas de viagem , textos deliciosos nos encantam e levam a querer viajar mais !

  2. Concordo o Brasil é lindo Mas infelizmente a mídia só exibe o eixo Rio São Paulo

    O Amapá por exemplo tem a capital banhada pelo rio amzonas e ainda cortada pela Linha do equador a fortaleza de São José etc e etc…

  3. Me identifiquei muito com essas percepções tuas do texto. Acho incrível que com tantas realidades diferentes dentro do nosso país, boa parte dos brasileiros opte sempre em viajar pro exterior quando está de férias. Como gaúcha tenho uma curiosidade gigante em conhecer mais do Nordeste e do Norte do Brasil – pra mim é mais “outro país” do que Buenos Aires ou Montevidéu, por exemplo.
    Adorei a reflexão! 😉

  4. Ótimo texto! É muito claro isso quando se vê o quanto o turismo no Rio é badalado (tanto por brasileiros, quanto por gringos) e o quanto é ignorado o restante do belíssimo país que temos…
    Muitos dos próprios brasileiros nem se quer sabem o que perdem ao viver querendo o clichê!

  5. Que análise excelente! Seus textos sempre me surpreendem!
    Atualmente também moro em BH e fico sem entender como a “mídia” ainda não descobriu as belezas dessa cidade. Já morei também em Salvador e olha… lá não é apenas Pelourinho!

    Temos essa sensação que o Brasil é uma bolha onde só existem calçadões do Rio e o centrão de São Paulo, ou às vezes um interiorzinho de Minas que vive eternamente no século 19, quando há muito ainda a ser mostrado pra todo mundo.

    1. Exato, Caroline. Julgando pelas novelas, parece que Minas, Bahia, Rio Grande do Sul e outras partes do país estão presas em séculos passados, já que os relatos são sempre de época.

      Temos que descobrir as belezas do Brasil.

      Abraço.

  6. Sou Mineiro também e realmente nosso estado só é retratado em novelas de época.
    Fico impressionado de como não me lembro de ver as belezas de Florianópolis em nenhuma novela ou filme.
    Não sou uma pessoa muito viajada, mas já fui em alguns estados e todos tem belezas únicas.
    É um pecado não falarem de Vitória, Domingos Martins, Itaúnas, etc.
    Infelizmente a própria mídia divulga pouco nossas belezas.

    1. De fato, Ígor, o ES é esquecido pela mídia. E é um estado lindo! A mesma coisa acontece com outras partes do país, infelizmente.

      Abraço.

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