Eu sempre quis visitar outros países, mas foi só depois de cruzar fronteiras que entendi que eles existem mesmo. Não importa quantas vezes eu tenha sonhado e lido sobre o tal exterior, a verdade é que precisei ver de perto para entender o tamanho de nossas diferenças e semelhanças. O impacto foi quase um atropelamento. Literalmente: por sorte o carro não me atingiu, mas passou buzinando.
É que minha primeira viagem internacional foi para a África do Sul, há seis anos. Quando tentei fazer uma coisa simples – atravessar a rua – olhei para o lado de sempre, por instinto. Só que a África do Sul segue a tal da mão-inglesa, em que os carros trafegam na mão contrária da via. Eu olhava para um lado e o trânsito vinha frenético do outro, pronto para o combate de todos os dias e que sempre tem o pedestre como derrotado.
Também foi na África que tive meu primeiro contato com o islamismo, religião que mais cresce no mundo, mas que é minoria no Brasil, em que o espectro religioso se concentra na doutrina cristã e suas variantes. Todos os dias, milhares de fiéis paravam tudo para orar, numa demonstração de fé que eu nunca tinha visto. O idioma, a cultura e o modo de vida foram outras grandes diferenças (e, por que não, semelhanças). Até pedir um hambúrguer no McDonald’s era complicado, já que o Cheddar McMelt, meu favorito da era pré-hamburguerias, é uma especialidade só do Brasil.
A viagem para a África acabou de forma prematura. Meses depois, coloquei um mochilão nas costas e iniciei a jornada que iria, há cinco anos, criar este blog. Foi a época da nossa volta ao mundo. Da Índia, Tailândia, Europa, Oceania e América Latina. Passei dias dentro de tuk-tuks, visitei vilas perdidas no tempo e metrópoles muito parecidas com São Paulo ou mesmo Belo Horizonte, onde nasci, mas que estão do outro lado do globo.
Conheci gente de todos os tipos e entendi um pouco mais sobre a grandeza do mundo. Não que tenha sido fácil. Lidar com gente de formações e culturas tão diferentes foi desafiador e, em vários momentos, jogou na minha cara meus próprios preconceitos e privilégios. É muito fácil julgar o outro usando os óculos de nossa própria formação cultural e nossas oportunidades na vida. Infelizmente, o etnocentrismo, essa tendência de achar que “nós” somos melhores do que “eles”, não é exatamente fácil de ser controlado.
Além do descanso, do lazer e das experiências – que sim, reforçam todos aqueles clichês de Facebook que garantem que viajar é um investimento que te torna mais rico – o ato de cair na estrada pode ser resumido numa palavra: oportunidade. Viajar é uma oportunidade de conhecer outras terras, lugares marcantes, pessoas diferentes e outros modos de vida. Viajar é também uma oportunidade de quebrar todas as certezas que temos sobre a vida, o universo e tudo mais. Uma chance a mais para a empatia, essa característica que poderia evitar as maiores tragédias do mundo se não fosse evitada por tantos.
Talvez esse seja o ponto central deste texto: viajar nunca foi tão comum. Conversar com outras terras nunca foi tão fácil. Tenho uma prima prestes a se casar na Austrália; um primo vivendo nos Estados Unidos e outra prima querida morando na Irlanda. Minhas sócias moram fora do Brasil e tenho incontáveis amigos vivendo a milhares de quilômetros do meu país. Mesmo assim, converso e tenho notícias dessas pessoas frequentemente. Mesmo a muitas fronteiras de distância.
É a tal da Aldeia Global, como escreveu Marshall McLuhan anos antes do boom da internet. O mundo ficou pequeno e conectado. Somos todos vizinhos. Mas, por algum motivo, tirando nossos parentes e amigos mais próximos, somos como vizinhos de um grande condomínio, que se observam pelo olho mágico antes de sair de casa, para garantir que não vão trombar com ninguém no corredor. As redes sociais nos conectam, mas nos colocam em nossas próprias bolhas de autoafirmação, lugares em que não há debate, só aplausos. Que podem ser até com emojis.
Não que eu reclame da internet. Jamais. Vivemos a maior revolução comunicacional da História, algo só comparável com a invenção de Gutenberg. É a internet que permite o estilo de vida que tenho hoje e que, junto com outras tecnologias, aproximou o mundo. Quando eu entrei na faculdade, em 2005, alguns professores diziam que a internet não mudaria tanto as coisas. Até a opinião deles mudou, o que é normal. Preocupante é perceber que outro clichê máximo do Facebook – o de que viajar te torna uma pessoa melhor – não passa de uma frase vazia. Isso depende da pessoa. E embora muitos usem o mundo menor para abrir suas cabeças, outros tantos preferem o caminho da intolerância.
O ser humano conhece Paris, mas dá coices em moradores de rua. Passa as férias no México, mas cogita construir um muro para impedir que os mexicanos venham no sentido contrário. Adora conhecer outros países, mas acha que todo muçulmano é terrorista. Muitos escolhem, todos os dias, o ódio como caminho. E como é fácil odiar na internet, não? Afinal somos todos vizinhos, mas é fácil xingar com a porta fechada, do outro lado do olho mágico e sem ter que ficar cara a cara.
Vivemos numa época que é fantástica e desafiadora – e, sei lá você, eu adoro ter nascido nesse período. Mas se por um lado damos voz para os mais diversos grupos e culturas, vemos crescer o grito da intolerância, da xenofobia, do preconceito, da homofobia e do machismo, entre tantos outros. A onda da intolerância não tem endereço ou fronteira definida. Está no Brasil, nos Estados Unidos e na Ásia. E pode ser derrotada.
Oportunidade. Não tem sentido falar em viagens, em outras culturas e vidas, não adianta viver num mundo que permite a aproximação de pessoas, se não controlarmos a xenofobia e o etnocentrismo cultural. Não tem sentido estar conectado, mas preso na bolha dos que pensam como a gente. Por sorte, ainda acho que a maior parte de nós – me arriscaria a dizer que a maioria esmagadora – quer superar esses fantasmas que rondam o mundo atual.
Outra frase que também já é quase um clichê, mas nem por isso mentirosa, diz que a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. O medo de muitos – e que tem se tornado o meu – é que, apesar e por causa de nossa Aldeia Global, o século 21 resolva imitar o século 20. O principal desafio é o mesmo de sempre. Precisamos estar abertos ao diferente, seja numa viagem ou em quais amigos seguimos no Facebook.
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Cara, que texto legal.
Na verdade, os textos de vocês sempre são, eu só precisava dar uma passada pra agradecer a inspiração sempre disponível. Passar aqui para ler é sempre um refresco, e muitas vezes seus escritos me fizeram pensar em cursar jornalismo.
Obrigado, Mariana!
Ganhei o dia com seu comentário. 🙂
Abraço.
Texto perfeito, Rafael!
“O ser humano conhece Paris, mas dá coices em moradores de rua”: sintoma do nosso tempo. Tristes tempos em que, como Brecht disse,precisamos defender o óbvio! O exercício da empatia (como você muito bem aponta) e a consciência de que o outro é uma alteridade resolveria vários de nosso problemas, não acha?!
Como você, também acredito que podemos vencer esse levante de ódio que tanto tem assustado. Podemos e vamos vencer SIM!
Abraços.
Vamos seguindo, Carlos. Dá medo, mas temos como vencer essa fase.
Abraço e obrigado pelo comentário.
Amei o texto, Rafael. “Eu sempre quis visitar outros países, mas foi só depois de cruzar fronteiras que entendi que eles existem mesmo”. Ri muito! Eu tenho essa ‘síndrome do Show de Truman’, acredito que só quando eu sair pra mais longe, eu vou ter certeza de que o mundo é tão grande como dizem.
É bem legal você falar sobre intolerância. Me faz lembrar das pessoas que viajam e medem o seu grau de sucesso de acordo com os países que ‘conheceram’, e usam esse mesmo padrão para medir o valor das outras pessoas.