“Estou dando uma volta ao mundo numa bicicleta de bambu”, foi mais ou menos assim que o Ricardo Martins, 32 anos, me escreveu por email. Contou também que estava em Zanzibar, na Tanzânia, já tinha vivido várias aventuras como ter a casa queimada e viajar com uma média de dois dólares por dia. Pronto, eu estava bem curiosa e doida para contar essa história aqui no blog.
O projeto do Ricardo, chamado “Roda Mundo”, envolve sustentar suas viagens através de financiamento coletivo e também fazer uma pesquisa – aproveitando o uso da bicicleta – sobre mobilidade urbana no mundo. Ele também tem uma política de que seu roteiro é definido pelas pessoas que vai conhecendo na estrada.
Eu mandei algumas perguntas para o Ricardo nos responder. A gente não costuma fazer esse formato de entrevista aqui no blog, mas achei que era a melhor forma de contar essa história. Depois, digam nos comentários o que vocês acharam.
Qual é a sua história antes de começar essas viagens? O que você fazia, de onde veio?
Acho que sou um clássico nerd, daqueles que jogavam RPG na escola e eram do clube de xadrez, sabe? Me formei em marketing, queria ser rico, trabalhava umas 12 horas ao dia, um típico cara normal. Aos 21, eu já havia conquistado meus sonhos de adolescente: morar num lugar legal, bom emprego, essas coisas.
Depois de ter conquistado tudo o que queria até então, vi que aquele sonho simplesmente não era o meu, só o havia feito porque a vida “tinha que ser daquele jeito”, mas eu não estava feliz. Então resolvi planejar meu primeiro sonho, de acordo com o que eu queria, não com o que quiseram por mim, daí decidi fazer minha primeira viagem.
Viajei de bicicleta durante quatro anos pela América do Sul, com R$ 385 iniciais. Foi o grande sonho realizado, os dias mais felizes da minha vida, que mudaram minha forma de ver o mundo, as pessoas e a mim mesmo. Dessa aventura saiu o meu primeiro livro, chamado Roda América, depois comecei a fazer palestras pelo Brasil por alguns anos depois de terminada a aventura.
Fui fazer trabalho voluntário com crianças no Pantanal, depois fui pra Nova York trabalhar, aí fui me perdendo por outros países. México, Ilhas Cayman, Bahamas, até voltar pro Brasil pra iniciar uma nova carreira. Me formei depois também em Sociologia e comecei a trabalhar com mobilidade urbana.
Como surgiu essa ideia de usar uma bicicleta de bambu? Foi você quem fez? E qual a história do nome da bicicleta?
Como disse antes, sou meio nerd, então costumo colocar o nome nas bicicletas de personagens de livros que me marcaram – a bicicleta com a qual eu viajei a América do Sul se chamava Capitu, por exemplo (do Dom Casmurro). Capitu teve um fim trágico no fim da primeira viagem (não posso contar o final do livro, né?), por isso fiquei alguns anos “viúvo”, sem conseguir usar outras bicicletas, foi bem traumático.
Pois bem, Dulcinéia é a donzela do Dom Quixote, um dos meus livros de cabeceira. Toda essa aventura é estupidamente quixotesca, aliás. Um dia vi na rua um senhor pedalando uma bicicleta de bambu, aí perguntei quem a havia feito. Descobri que o rapaz que as produzia era fã do meu livro e adorou a ideia de fazer minha próxima bicicleta. A Dulcinéia é feita sob medida, então encaixa tal qual uma luva, foi literalmente feita pra mim, olha que romântico! Fora isso, a bicicleta de bambu é extremamente resistente e provoca curiosidade por onde passa. Pra mim, que viajo sozinho, é uma forma de me aproximar das pessoas e eliminar distâncias em lugares mais isolados.
Quem quiser saber mais dessas bicicletas é só entrar no site da Art bike bamboo. O Klaus é um cara espetacular, que acompanha a Dulci até hoje, como um pai coruja.
A sua primeira grande viagem foi de 4 anos pela America do Sul. Por que você decidiu partir nessa jornada? O que você aprendeu nessa viagem?
Na primeira viagem foi quando decidi viver a vida do meu jeito e isso foi acontecendo em camadas. Um livro chamado “As veias Abertas da América Latina” já estava muito marcado em mim, pois nele o Eduardo Galeano viajou pelo continente pra mostrar uma nova América Latina, contando sua história por si mesma. Decidi viajar pra ver o continente com os meus olhos, além da TV e dos livros.
Aliado a isso, sou filho de caminhoneiro, né… Sempre viajava com meu pai nas férias, o que formou uma memória muito profunda. Sempre gostei de praticar esportes, embora tenha sido péssimo em todos eles. Tudo isso foi condensando e explodiu de uma vez, quanto decidi me preparar pra viajar de bicicleta pela primeira vez.
Aprendi a lidar melhor comigo mesmo, com meus meus medos e administrar os riscos. Aprendi a viver a vida de acordo com o que eu acredito, e levar isso a condições extremas quando necessário. Aprendi a lidar com gente, fazer amigos, levar a vida sem pressa.
Como foi o processo de escrever o seu primeiro livro depois dessa viagem? Tem alguma história dessa viagem que te marcou mais?
Foi um processo árduo e obsessivo, talvez. Reescrevi esse livro 7 vezes, até ficar da melhor forma que eu fosse capaz de fazer. Eu já tinha um blog de viagem, que com o tempo havia acumulado módicos seguidores, então só fui reescrevendo e absorvendo críticas, depois vendi online para os leitores antigos e também nas palestras que passei a fazer.
As histórias são incontáveis. Vivi com tribos indígenas no Pantanal, trabalhei nas minas de Prata na Bolívia, tive salmonela duas vezes e quase morri na última delas, trabalhei como consultor de marketing para o Governo da Bolívia, me apaixonei perdidamente, perdi meu pai durante a viagem. Fora isso, quebrei o joelho e fiquei de cadeira de rodas por alguns meses, mas depois de três cirurgias e 1 ano e meio de recuperação voltei pra estrada e terminei a aventura.
Nossa, as histórias são muitas, um livro seria mais do que necessário pra condensar tudo isso.
É bem interessante a sua forma de montar o roteiro da volta ao mundo (Roda Mundo), com as pessoas te indicando caminhos. Me explica um pouco melhor como isso tem funcionado e por que você teve essa ideia?
As pessoas que encontro no caminho montam o roteiro, por uma razão ideológica e também prática. Eu viajo por gente, acredito e amo a raça humana e me surpreendo cada vez com o que vejo e quanto mais me embrenho. Deixar que as pessoas orientem o que vivo é coroar essa confiança. Nunca me arrependi, pois minhas melhores experiências partem sempre dessa prerrogativa.
Também há a razão prática. Como viajo com baixíssimos recursos, o volume de variáveis é tão grande que o planejamento do caminho simplesmente não se cumpre, então simplesmente parei de calcular. As pessoas contam sobre perigos a evitar, lugares a conhecer, faço amigos pra rever, me apaixono, ouço histórias que quero conferir. Os pontos a conhecer se formam conforme avanço, então não poderia ser de outra forma.
Até o momento já esteve em quais lugares? Pode contar alguma história curiosa sua ou de alguém que conheceu no caminho?
Ao menos de bicicleta, já cruzei Brasil, Bolívia, Peru, Chile, Argentina, Uruguai, África do Sul, Suazilândia, Moçambique e Tanzânia – no momento lhes escrevo desde Zanzibar.
Mal dá pra enumerar as histórias das pessoas com as quais cruzei. No Uruguai, conheci o Eduardo Galeano e fiquei em sua casa, depois viramos amigos. Além de ter sido um dos responsáveis por eu começar a viajar, ele foi um grande ídolo. Isso me marcou muito. O contato com as tribos indígenas e os trabalhadores nas minas de Prata também me marcou muito.
Ah, mas agora na África as experiências têm sido mágicas e extremas. Já cruzei três guerras civis, vi novos modelos de vida, vou entendo como a vida funciona com recursos ínfimos, o resultado é surpreendente. Considerar a África meramente primitiva e pobre é uma redução em nada corresponde com a vida real, as pessoas aqui surpreendem com a força que têm. África é outra coisa, então mais vale pegar tudo o que você sabia antes e deixar guardado, pra começar do zero. Aqui me encontrei, mas daqui a pouco me perco de novo, pra me encontrar em outro lugar. Eis um bom resumo da minha viagem.
Por que você decidiu fazer crowdfunding para financiar boa parte da sua viagem? Como foi o retorno das pessoas?
Resolvi vender meu livro como recompensa no crowdfunding, a atrelar a isso outras experiências a quem decidisse topar a aventura comigo. As recompensas incluíam cartões-postais de qualquer lugar do mundo, ou mesmo um pedaço de qualquer continente, desde areia do Saara até uma pedra do Kilimanjaro, funcionou bem. Além disso, já tinha muita gente que acompanhava a viagem e queria fazer parte, a adesão foi excelente! Batemos 131% da meta estipulada, com isso consegui comprar os equipamentos pra volta ao mundo e ao menos financiar minha comida nos 6 meses iniciais.
Agora, passados 10 meses, o modelo de crowdfunding é diferente, onde as pessoas pagam valores pequenos e mensais, a partir de R$ 5. O modelo pra isso é simples: pra manter os vídeos no YouTube, fotos e textos, preciso continuar viajando, e pra continuar viajando preciso de recursos mínimos. As pessoas que querem fazer parte desse sonho, ou compactuar com novos modelos de vida, fazem isso e também acompanham o resultado nas postagens.
Fora isso, as recompensas são bem legais! As pessoas mandam mensagens e perguntas, que vou mandando em vídeo depois. As perguntas são respondidas por monges no Tibet, tribos africanas, crianças no Oriente Médio, é uma surpresa. As respostas vão sendo compiladas, pra entrarem depois em um documentário.
O bom desse novo modelo é que consigo viajar por mais tempo, sem precisar parar pra trabalhar, pois faço da viagem meu trabalho. Até o momento, estou batalhando pra bater ao menos a primeira meta, pra ter ao menos comida todos os dias, muito mais do que isso não preciso. Estou hoje em 75% da meta. Falta pouco! (Colabore aqui)
Como será essa pesquisa sobre Cicloturismo e Mobilidade Urbana pelo mundo?
A pesquisa já tá em curso, tá linda! Basicamente, o Roda Mundo contou com o apoio da UFRJ, do Governo do Estado, Prefeitura do RJ e a ONG Transporte ativo pra fazer disso um grande projeto, de alcance mundial.
Basicamente, elaboramos questionários, sobre problemas de mobilidade e soluções encontradas, e durante a viagem vou fazendo entrevistas com integrantes de movimentos sociais, ONGs, governo e sociedade civil. Está sendo ótimo, pois costumo passar por lugares onde pouquíssimos vão, então são dados frescos e novos. Vamos compilar e publicar ao menos um estudo por continente. Os dados da África estão sendo surpreendentes!
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Parabéns Ricardo, vou contribuir com a sua aventura, inspiradora.
Que inspiração você é Ricardo! Não só por estar viajando numa bicicleta de bambu pelo mundo, mas por utilizar essa viagem por uma causa maior: sua pesquisa sobre Cicloturismo e Mobilidade Urbana pelo mundo!
Mas olha… me tira duas duvidas. 1) onde compro seu livro de viagem de bicicleta pela América Latina? E 2) onde está o capacete de bambu para completar o look de ciclista, hem?
Olá! Ok, vamos lá. Rs
1 – vi seu que não estás conseguindo comprar pela Amazon, certo? Nesse caso, me passa o seu e-mail e e mando grátis o e-book, será um prazer.
2- existe uma grande parcela de cicloativistas que não usam o capacete para viagem e uso urbano, faço parte deles. As razões são muitas, vale um post só pra isso.
Abraços!
Opa Ricardo, bom dia!
Também gostei muito da matéria!
Parabéns pela iniciativa e atitude!
Também já fiz algumas viagens de bike, e fiquei curioso pelo livro também!
Se puder me enviar, ficarei muito agradecido, e quero conversar mais com você também a respeito de outros detalhes da viagem!
Meu email é: francisdemattos@gmail.com
Valeu! Muito obrigado e até a próxima! =D
Claro, cara! Escreve direto pela fanpage, vai ser um prazer! Entra no facebook.com/bambootrip
Tamos ae!