Meu bisavô Niccola Becattini tinha 15 anos quando saiu de Rocca San Casciano, uma pequena comune italiana a poucas horas de Florença. Os detalhes dessa história eu nunca soube muito bem. Só passei a me perguntar sobre essa trajetória quando, recentemente, entrei em contato com documentos que contavam, entre carimbos e firma de cartório, fragmentos de sua vida.
Eu não o conheci, mas me lembro de quando escutei pela primeira vez, fascinada, minha avó contar que ele havia cruzado o oceano de navio e viajado por muitos e muitos dias para chegar ali. Para uma criança de apartamento dos anos 1990, aquela era uma aventura inimaginável. Foi depois que sua mãe Pia faleceu que ele embarcou com o pai, irmãos e outros parentes rumo ao Novo Mundo. Fugiam da fome e da crise implacável que assolava a Itália em fins do século 19 – e a América era, naquela época, uma terra repleta de oportunidades. A esperança de uma vida melhor foi o que motivou esses milhares de italianos que, como ele, cruzaram o oceano sem passagem de volta.
Sem grandes registros da trajetória do meu bisavó, passei a procurar informações sobre essa onda migratória. Descobri que a primeira viagem era feita dentro da Itália, de carroça ou a pé, até os portos de Gênova ou Nápoles, de onde partiam. O governo brasileiro pagava as passagens em navio a vapor, terceira classe, e que a viagem podia durar até 40 dias, em condições insalubres que facilitavam a proliferação de doenças como sarampo e cólera. Não eram poucos os que não resistiam. Quem aceitava os termos viajava no escuro: só descobria o destino ao desembarcar. Do porto de Santos ou do Rio de Janeiro, não sei, a família do meu antepassado viajou ainda até o interior de Minas Gerais. Em Curvelo, aprenderam português, casaram-se, tiveram filhos e ganharam a vida com construção civil.
Imigrantes italianos em São Paulo. Foto: Fundação Patrimônio da Energia de São Paulo – Memorial do Imigrante
Niccola sempre sonhou em retornar à sua terra. Aos sessenta anos perdeu a visão, consequência do glaucoma. Quando se deu conta de que nunca mais voltaria a ver a Itália, disse que então já podia morrer. Viveu ainda algumas décadas, mas a Itália permaneceu um sonho impossível.
Parei para pensar sobre tudo isso quando fazia o caminho inverso. De como o mundo ficou pequeno. De todas as vezes que cruzei o mesmo oceano em um espaço tão curto de tempo. Sentada em uma cadeira incômoda de avião, decidindo se comeria frango ou massa quando o carrinho de comida passasse por mim. Pensei nos meus planos de me assentar por um tempo do lado de cá, sabendo que sempre terei o Brasil para chamar de casa quando quiser voltar. Que meus amigos, família e as ruas em que passei minha infância sempre estarão a alguns cliques e oito horas de voo de mim, e nos meus planos de estar com eles todo natal.
Eu não sei detalhes de como era a vida do meu biso na Itália, se eles viviam bem ou se passavam dificuldades ou quais foram as razões que tornaram a travessia suportável, mas sempre pensei nessa onda migratória em geral como uma busca por refúgio humanitário. E que, mesmo tendo se passado 140 anos desde que os primeiros imigrantes italianos chegaram ao Brasil, tanta gente ainda enfrenta viagens tão parecidas com a dele, e tão diferentes da minha.
Pessoas que deixam suas casas e cruzam mares e terras em jornadas de vida ou morte. Que precisam lutar para se adaptar em um país desconhecido sem saber se algum dia voltarão a colocar os olhos no lugar que chamam de casa, não porque assim o escolheram, mas porque era preciso. Imigrar sempre é assustador e difícil e um caminho cheio de incertezas, mas, mesmo em um mundo em que a tecnologia driblou a distância, ainda somos privilegiados por poder escolher entre ir e ficar e a certeza de voltar quando a saudade bater.
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Lindíssima história a do seu biso, Natália. Beijos à todos!
Obrigada, Eliane!