“Na mata aqui atrás tem uma Curupira, meu filho já viu. É uma criança pretinha, mas ele não conseguiu ver se ela tinha mesmo os pés virados pra trás”. Morador da comunidade ribeirinha de Coroca, em Alter do Chão, Seu Onivaldo é enfático em dizer para qualquer um que duvide: os espíritos do folclore amazônico não são lenda, coisa nenhuma. Vivem na floresta e nos rios e fazem parte do dia a dia das pessoas da região. Ali, no pequeno povoado às margens do Rio Arapiuns, a Curupira, ente protetor das matas, é quem mais costuma dar as caras.
“Ela é danada. Ela despista a gente e espanta a caça. Faz um barulho de um lado, na hora que você olha, não tem nada. Ai faz o barulho do outro lado. Enquanto você procura, os bichos já fugiram todos”. Figura folclórica famosa em toda a região amazônica, a Curupira sempre fez parte da cultura dos povos dali, sendo um dos personagens folclóricos mais antigos do Brasil. Há registros sobre ela desde o século 16 e, embora a descrição física varie de acordo com a região, os relatos são unânimes em alguns pontos: de estatura baixa, pele escura, cabelos vermelhos e pés invertidos, ela aterroriza quem tentar derrubar árvores ou caçar animais.
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Seu Onivaldo sabe bem. Era ela, ele garante, quem derrubava todas as noites as caixas de criação de abelhas instaladas em Coroca, que tem na venda do mel produzido ali uma de suas principais fontes de renda. Também é ela a responsável por fazer com que mesmo os conhecedores mais experientes das matas andem em círculos sem parar: “Ela bagunça nossa cabeça e não tem quem consiga encontrar o caminho”. Mas quem vive com a constante presença do espírito já aprendeu a lidar com ele. Para cair nas graças da Curupira, é preciso deixar um pouco de fumo ou cachaça de presente. “Pode também fazer uma trança com algum pedaço de pano ou palha e deixar em cima de uma pedra. Ela fica distraída com a trança e esquece de você”, explica.
Ourimar, também morador da comunidade, relata já ter sentido a presença da Curupira, mas foi com outro personagem o seu encontro mais marcante. “Um dia eu estava pescando no barco e vi uma pessoa sair do rio até a metade do corpo. Como estava meio escuro, eu não consegui ver o rosto, mas dava pra ver a forma de um corpo certinho, e a pessoa parecia que usava uma chapéu”, conta. “Será que era o boto?”, perguntei. Ele riu e deu de ombros: “Vai saber…”.
O boto é outra figura muito presente no imaginário local. Seja nadando nas águas próximas ao mercado de Santarém, onde eles passam para se alimentar dos peixes jogados pelos vendedores, ou protagonizando a colorida disputa da festa do Çairé, o animal e as lendas que o cercam fazem parte do cotidiano dos moradores de Alter do Chão.
Representação do Boto em sua forma animal e humana durante as apresentações do Çairé de 2019.
Na lenda, ele se transforma em um homem atraente que seduz mulheres solteiras nas festas e noites de lua cheia. Mas o personagem também já enganou os irmãos de Dona Neida. Um dia, quando jogavam dominó, escutaram o assobio do boto e resolveram ir atrás para tentar encontrá-lo. Quando chegaram ao local de onde acreditavam vir o som, o assobio já soava em outro canto da ilha: “Na hora que ele assobia a gente arrepia todinha”. Correram lá e, outra vez, o barulho tinha mudado de lugar
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