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Da caça ao prato: crônica de uma refeição anunciada

O restaurante tinha um varandão com vista pra rua, clima bucólico e decoração charmosinha – hipster até, principalmente se você considerar que estávamos numa vila com menos de três mil habitantes. A comida, o segundo motivo que mais leva clientes a restaurantes nos dias atuais, atrás somente do desejo por fotos no Instagram, era ótima. Tinha tudo aquilo que antigamente importava: pratos grandes, preços justos e um sabor que justificava a fama.

Para completar a lista de pontos positivos, nem bem abriu as portas e o estabelecimento ganhou um gato. Um gato sem nome com olhos de ágata, como diria Drummond, e marcas de rua. Carregava nas orelhas as cicatrizes das muitas batalhas por território; não trazia no corpo aqueles quilinhos a mais típicos dos animais domésticos e dos humanos que pouco saem de casa.

Mas domesticado ele foi – ou será que ele domesticou o restaurante? Os meses se passaram e os clientes se acostumaram a comer entre ronronados e miados; entre a cauda que esfrega a perna e o olhar fixo no prato de comida. A dona do restaurante passou a alimentá-lo e até ao veterinário o bicho foi. Protestando, mas foi.

gato

Por Crazy nook, Shutterstock.com

Eu sei, a presença do animal poderia incomodar em outros estabelecimentos, mas ali, um restaurante hipster e vegano na praia? O gato era um bônus, bicho-ilha no meio do arquipélago, ritual de afagos após o pagar da conta. Gostamos tanto do jantar que prometemos: voltaríamos. E o gato, admito, teve seu papel na decisão.

Voltamos, mas num dia ruim. “Um dos meus funcionários não veio hoje”, explicou a dona, já deixando claro que o tempo de espera seria longo. Pegamos a única mesa disponível e pedimos uma entradinha, na esperança de que um prato simples chegasse rapidamente. Mais de uma hora depois e a comida ainda não tinha dado as caras, mas a fome sim. Ouvíamos reclamações sussurradas nas mesas ao redor, conversas impacientes de estômagos insatisfeitos. O gato, sempre presente, ajudava a distrair clientes que, como ele, ronronavam.

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Uma por uma, todas as mesas foram atendidas, pagaram as contas e ficaram vazias, restando só a nossa e a mesa em frente, ocupada por outro casal. Quase duas horas tinham se passado e um novo pedido de desculpas chegou – tudo bem, quem está de férias tem paciência, pensei meio impaciente.

E foi nesse ponto da noite que o jantar chegou à mesa, mas não o nosso. Parafraseando o Victor Hugo, mesmo um gato com olhos de ágata é uma errata do rato – a correção divina contra os camundongos, o antídoto contra o bichinho que há milênios faz o ser humano gritar e escalar cadeiras. E os ratos eram muitos por ali, provavelmente trazidos pelos navios que atracavam no porto.

O gato foi à caça e, já com a presa entre os dentes, passou entre as minhas pernas. “Ele pegou um calango”, disse a moça da mesa vizinha. De relance, eu tinha percebido que a vítima era outra, mas preferi não comentar – por que causar pânico, logo agora que a comida está chegando?

Em todo caso, ele tinha ido pro meio da rua com sua presa, estava longe do restaurante. Os pratos enfim chegaram, novos pedidos de desculpas também. E o gato, com o rato entre dentes, cauda inerte saindo da boca e o olhar triunfante de quem caçou a refeição que teimava em chegar, pulou entre as mesas.

A primeira reação foi uma mistura de perplexidade com uma tímida tentativa de chamar a dona ou uma funcionária do restaurante, que estavam na cozinha. Não deu tempo: o gato soltou o rato, que caiu no chão. Morto, mas prestes a voar – com um sádico tapinha pra cima, o gato fez o rato alcançar o nível das mesas ao mesmo tempo em que quatro humanos pulavam nas cadeiras.

O vôlei gatuno continuou até que a cozinheira, atraída pelos gritos, chegou com uma vassoura. E encontrou um dos clientes (juro que não era eu) em cima da mesa, chinelo na mão, tentando afastar o gato de seu brinquedo. Vassourada pra lá, felino pra cá, e nos sentamos, finalmente, para o jantar.

O rato ainda permaneceu ali por alguns segundos, testemunhando as garfadas apressadas de comensais da morte – foi o tempo para que a cozinheira pegasse uma pá e realizasse o funeral na lixeira, longe dali; para que a dona pedisse mais mil desculpas e nós pedíssemos a conta.

Ganhamos uma sobremesa gratuita, o que afastou a pressa de ir embora e soltou os risos. Meio nervosos, mas ainda assim risos. E deu tempo de ver o retorno do gato. Triste e sem entender, olhar fixo no lugar onde ele tinha largado o jantar.

Imagem destacada: Por Grigorita Ko, shutterstock.com.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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