“Amarmos os nossos corpos fora do padrão é um constante ato de resistência. E isso não significa que estejamos imunes a armadilhas de, por exemplo, ficarmos chateadas porque uma coisa não serve, porque não conseguimos fazer algo que queríamos por conta do nosso corpo”, diz Polly Marques, nossa entrevistada desta edição da Vozes, é jornalista, influencer, viajante, criadora do Viaja, Gorda! e, sim, gorda.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), um em cada oito adultos em todo o planeta é obeso. Até 2025, a projeção é de que cerca de 2,3 bilhões de pessoas estejam com excesso de peso. Desses, mais de 700 milhões terão obesidade. No Brasil, a obesidade atinge quase 20% da população.
E foi pensando nessa parcela do povo, e na falta de material específico para os obesos, que a Polly criou o instagram Viaja, Gorda! Um lugar de aceitação, troca de ideias, informações e de muita foto bonita e inspiradora.
Como surgiu o Viaja, Gorda!
O Viaja, Gorda! nasceu em um momento em que a Polly estava em crise depressiva. Veio por sugestão da terapeuta, que sempre dizia que ela precisava buscar formas prazerosas de colocar para fora aquilo que a angustiava. “Eu não achava essa forma, porque quando você está em depressão tudo parece cinza e sem graça. Num domingo de manhã, lá pra meados de dezembro de 2018, eu acordo com um nome repetindo mil vezes na cabeça ‘Viaja, Gorda!’. Eu achei que fosse só o meu bichinho viajador gritando, mas não, era “o” clique”.
A força veio da terapia e de pessoas próximas. Foi em 2019, enquanto se organizava para uma viagem, que ela percebeu que ninguém escrevia para o público gordo viajante.
“Desde que consegui uma certa independência financeira, em 2007, peguei gosto por viajar. E às vezes me metia em algumas enrascadas exatamente por não ter informações para pessoas gordas: banco de bar que já quebrou, cama pequena, banheiros com banheiras (coisa antiga) que eram muito altas e difíceis de entrar, box de chuveiros na Europa que não me cabiam para entrar… Então, por que não aliar a minha profissão com a paixão por viagens?”, diz a jornalista.
Em 29 de janeiro de 2019 ela fez o primeiro post do Viaja no Instagram. A recepção foi incrível.
A cobrança da sociedade pelo “corpo perfeito”
“É incrível como em pleno 2020 a gente ainda precisa reafirmar que nossos corpos são ok como são. E também é incrível como a indústria do emagrecimento e a anti-envelhecimento tem espaço e peso no discurso de felicidade”.
Polly diz que está sempre tentando estudar sobre o assunto, principalmente no peso que a mídia tem nessa construção da imagem idealizada de ser uma mulher com corpo perfeito e feliz. E diz que tenta passar isso de duas formas para quem segue o Viaja, Gorda:
Para as magras/não-gordas tenta mostrar que, apesar de serem vítimas de pressão estética, elas não sofrem gordofobia e que devem evitar reproduzir o comportamento gordofóbico: não fazer “piadas” sobre os corpos; não falar para uma pessoa gorda que ela deve se preocupar com a saúde; tomar cuidado para não ser fiscal de prato e de roupa que o gordo consome, etc.
Já para os gordos, principalmente para as gordas, ela tenta mostrar como foi construído ao longo dos anos o ódio aos corpos, como podemos criar estratégias para que as críticas à nossa presença/existência não nos machuque tanto; fala muito de acompanhamento psicológico (porque o ódio a si mesmo gera consequências mentais muito densas); tenta mostrar como é possível ocupar os espaços sociais e também como a luta por direitos é importante. Um exemplo: uma coisa que pouca gente sabe é que o transporte público deve oferecer lugar antes da catraca para pessoas gordas e também lugares preferenciais.
“Aí você me pergunta: o que isso tem a ver com viagem? Pois então, eu creio que não dá pra viajar quando não se acredita no seu potencial, no seu próprio corpo, sem saber dos seus direitos, sem saber criar estratégias para se defender”.
Se não é fácil pra você, não é fácil para os outros – e para a Polly não foi diferente: “Me aceitar foi um processo longo. Nasci gorda, fui uma criança gorda, uma adolescente gorda que sofria bullying e desenvolvi bulimia”.
Polly conta que o preconceito vinha da família, dos amigos e até mesmo da escola. Ela emagreceu por conta da doença, ficou com um aspecto adoentado, mas era super incentivada a permanecer magra. E assim foi. “Fiquei “magra” dos 15 aos 23. Depois comecei a ganhar peso novamente e odiava não caber nas roupas. Na faculdade de jornalismo ouvi que eu não poderia ser repórter de vídeo ‘porque gorda desse jeito….’. E ganhei mais peso à medida que me odiava… e me odiava à medida que ganhava mais peso”.
Com a chegada dos 30 as coisas mudaram um pouco. Ela viu que sempre tinha amigos, que tinha emprego, que namorava, que era querida, que a elogiavam. Só faltava ela se olhar com mais amor. E por que não?
Foi então que começou a se afastar de pessoas que só a deixavam para baixo com relação ao corpo, parou de seguir gente que vende uma imagem irreal nas redes sociais, foi conhecendo gente mais parecida com ela e foi se aproximando dela mesma. “Vi que, como todo mundo, tenho qualidades, competências… e a coisa foi acontecendo. Hoje eu não me imagino deixando de tomar o meu sorvete ou comer o meu torresmo com cachaça pra agradar ninguém”.
Para ela, uma das maiores dificuldades na hora de viajar é o tamanho dos assentos. Isso vale para qualquer meio de transporte.
Pode ser por conta das poltronas dos aviões, que estão cada vez mais estreitas, o vexame de não conseguir passar por catracas, a necessidade de ter que ir de pé porque o banco não te cabe ou até ver as pessoas olhando para o assento vazio do seu lado e não ocuparem o lugar porque você é gordo e certamente vai ficar esbarrando nela.
“E a gente não pode ter nosso direito de ir e vir cerceado porque não estamos no padrão. Eu sou muito cética sobre a boa vontade de algumas pessoas, então acredito que não há direito sem luta. E acho que esse momento, em que nossa existência enquanto gordas e gordos está em evidência, é estratégico para reivindicações”.
Dentre as principais dúvidas dos leitores do Viaja, Gorda, a maior insegurança é sobre se vão ou não caber em um determinado espaço: avião, busão, restaurante, hostel/hotel.
E a segunda é sobre como vão se sentir recepcionados e vistos nos ambientes: de novo o avião, restaurante, hostel (morrem de medo de serem colocados na parte de cima da beliche ou de outras pessoas os tratarem mal por conta do ronco, que é comum ao gordo).
“E o triste é ver como muitas dessas inseguranças são paralisantes. Uma seguidora, dia desses, me disse: ‘eu tenho condições de viajar, eu morro de vontade de ir para o exterior, mas nunca que eu entro num avião apertado, com todo mundo me olhando e para ficar lá dentro 10, 12 horas. E o banheiro causa pavor, eu não caibo lá dentro’ ”.
Viaja Gorda no Youtube
No vídeo abaixo, Polly dá dicas básicas do que uma pessoa gorda precisa levar pra praia e alguns cuidados extras, que muita gente nem imagina que sejam necessários.
Tipo que a roupa do gordo é maior, ocupa mais espaço e pesa mais. Que a gente pode usar pomada pra não ficar assado entre as coxas. Ou nunca tinham ligado para o hotel ou mandado um e-mail perguntando sobre o tamanho do box, sobre a cama e esses detalhes que só se começa a prestar atenção quando é com a gente.
Para mais vídeos, dê uma passada no canal do Youtube (ela tenta atualizar sempre que pode).
E não deixe de seguir a Polly no Instagram: @viajagorda
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Adorei!!
Adorei o texto!!!!!!