“Na Pedra Furada, abaixo de um local onde havia pinturas, escavamos tentando encontrar marcas do ocre vermelho, pedaços de paredes com pinturas caídas. Chegamos em datações de 26 mil anos”, conta Niède Guidon ao se referir às escavações na Serra da Capivara. Um número inesperado até para ela – e suficiente pra mudar a vida da nossa personagem desta edição da Vozes.
A ciência, assim como todas as áreas, está cheia de mulheres incríveis. E algumas delas têm trabalhos que são de extrema importância pra sociedade. É o caso dessa arqueóloga brasileira, nascida numa pequena cidade paulista. Niède Guidon é chamada de “onça” pelos amigos – e já enfrentou coronéis e até boa parte de comunidade científica pra defender o que acredita.
Arqueóloga Niède Guidon. Foto: acervo do FUMDHAM
Essa não é a primeira vez que a Dra. Niède aparece no 360meridianos. Em março de 2019, ela deu uma entrevista para o Rafael Sette Câmara, dentro do Origens Br, que se propõe a resgatar o passado do Brasil, o período antes dos colonizadores chegarem por aqui. O Origens Br vai passar por oito estados brasileiros e tem o patrocínio da Seguros Promo e da Passagens Promo. Ainda não conhece o projeto? Então se liga aqui.
Quer ver um vídeo sobre a nossa ida para Serra da Capivara? Dá o play!
“Eu passo o presente procurando o passado”.
Esse ideal levou Niède pra São Raimundo Nonato, um lugar que tinha tudo pra ser apenas mais uma cidadezinha perdida nos rincões do Piauí, mas que hoje tem até faculdade de arqueologia, em um campus que leva o nome da maior riqueza da região, a Serra da Capivara.
A ideia de transformar o local – e contar com a população pra isso – começou lá atrás, no início dos trabalhos de pesquisa arqueológica na região. “Desde que eu cheguei aqui, comecei a trabalhar com as pessoas daqui, que foram os meus guias. Depois, quando começaram as escavações, eu os ensinei a escavar. Trabalhavam nas escavações, e quando eu vinha, eram sempre essas pessoas daqui que estavam conosco. Sempre fizemos isso, procuramos então formá-los para que eles pudessem se desenvolver”. Quem lê essa frase nem imagina que a relação da arqueologia com São Raimundo Nonato começou meio por acaso, como conta a Niède.
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Arqueóloga Niéde Guidon em entrevista para Rafael Sette Câmara e Fellipe Abreu, em 2019
A primeira vez que ela ouviu falar dos sítios arqueológicos do interior do Piauí foi em 1963, enquanto ainda trabalhava na USP, no Museu do Ipiranga. É que ela tinha organizado uma exposição sobre as pinturas rupestres do Brasil. Mas deixemos a própria Niède contar essa história: “Uma pessoa que foi visitar pediu para falar com o responsável, me chamaram e daí ele me mostrou umas fotos e disse: ‘Olha, lá perto da minha cidade, no sul do Piauí, também tem esses desenhos de índios’”. Isso foi o suficiente para atiçar a curiosidade da arqueóloga.
Apesar disso, a primeira visita só aconteceu sete anos depois, em 1970. No par de dias que ficou por lá, ela visitou 55 sítios, fotografou tudo e levou pra França, onde estava morando na época. Lá, conseguiu que o governo francês financiasse uma missão, dela e de alguns de seus alunos numa universidade francesa, por dois meses, na Serra da Capivara. O resultado agradou tanto que a missão passou a ser permanente.
Na Serra da Capivara, além de resquícios de fogueiras e sinais da presença humana de milhares de anos, Niède também colecionou muitas controvérsias – e alguns narizes torcidos. É que com a datação do material encontrado por lá, muita coisa na principal teoria para o povoamento das Américas foi questionada.
Niède Guidon durante as escavações arqueológicas na Serra da Capivara- Foto: acervo da FUMDAHM
Mas como aqui a gente não quer causar confusão, se você quiser saber mais sobre essa história toda, leia o nosso texto sobre o assunto. Neste texto, cabe dizer que o trabalho e as conclusões da pesquisadora – mesmo debaixo de chumbo grosso de outros cientistas – causaram a criação do Parque Nacional Serra da Capivara, em 1979. Em 1991 a Serra da Capivara foi declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.
A FUMDHAM (Fundação Museu do Homem Americano) foi criada pela Niède, que atualmente é Presidente Emérita da instituição. O objetivo do órgão é garantir a preservação desse patrimônio cultural e natural – a FUMDHAM administra a Unidade de Conservação em conjunto com o ICMBio. Em 2020, o governo federal anunciou o interesse de entregar a administração do Parque Nacional Serra da Capivara para a iniciativa privada.
O Parque Nacional tem uma área de 130 mil hectares, onde estão concentrados mais de 1300 sítios arqueológicos. Isso faz desse o território com o maior número de sítios arqueológicos das Américas.
Vista aérea do Museu na Serra da Capivara. Foto- Fellipe Abreu
Niède Guidon, o Museu do Homem Americano, Museu da Natureza e a preservação da Serra da Capivara
“Inauguro o Museu da Natureza e vou descansar”. Quase três anos após essa declaração, as malas ainda não estão prontas, mas o sentimento de dever cumprido (ou quase) continua ali, firme e forte. Aos 87 anos, Niède jura que está pronta para passar o bastão pros mais jovens e, enfim, desfrutar da aposentadoria. Será?
Niède mora em São Raimundo Nonato desde os anos 1990 – ela se mudou para lá após se aposentar na universidade francesa em que trabalhava. E foi tanto trabalho, tantas escavações, que São Raimundo Nonato ganhou dois museus de primeira grandeza. O mais novo deles é justamente o Museu da Natureza, inaugurado no final de 2018. Localizado no município de Coronel José Dias, cidade vizinha de São Raimundo Nonato, O MuNa já registrou a presença de milhares de visitantes.
O acervo do museu ensina, de maneira bem lúdica, que o sertão já foi mar. Ou como diz a Niède: “mostra ao visitante como foi a formação da região, todo movimento tectônico, todos as diferentes épocas climáticas”. O MuNA guarda as descobertas paleontológicas da Serra da Capivara, ou seja, os fósseis de animais que viveram ali há milhares de anos, alguns deles atualmente extintos.
Arqueóloga Niède Guidon durante as escavações na Serra da Capivara. Foto: arquivo da FUMDAM
Vários objetos que hoje estão no MuNa vieram do primeiro museu construído na região, o Museu do Homem Americano, cujo acervo, após décadas de escavações, ficou muito grande, motivando o desmembramento.
Hoje, se o MuNa se dedica à natureza e aos animais que viveram na Serra da Capivara, o Museu do Homem Americano faz exatamente o que o nome indica: guarda fósseis dos seres humanos que viveram ali e reconta a história da ocupação dessa parte do Piauí.
Durante todos esse anos, a Fundação Museu do Homem Americano já passou por várias crises financeiras e busca no turismo uma forma de divulgar a região e trazer desenvolvimento. São mais de 350 km de estradas dentro do Parque Nacional e milhares de anos de história que precisam ser preservados.
Esqueleto encontrado durante escavações na Serra da Capivara. Foto: Fellipe Abreu
Como fazer isso? Com dinheiro, é claro. Mas dinheiro tem sido escasso por ali (e há muito tempo). Para Niède, muito em culpa da falta de interesse da população pela história do Brasil e sua preservação. O que é uma bobagem, como ela faz questão de lembrar: “o turismo é uma maneira de trazer recursos para um país”.
Quando questionada, Niède sempre diz que os 20 mil visitantes que o Parque recebe por ano representam um número muito abaixo na comparação com o que realmente deveria ser. E apesar de hoje existir um aeroporto na região, construído após muito trabalho e pressão da FUMDHAM, ele ainda não está operando. Com isso, o aeroporto mais próximo, com voos comerciais, fica em Petrolina, a quatro horas de carro do Parque, o que afasta ainda mais os turistas.
Gostou do trabalho da Niède e quer saber mais sobre a Serra da Capivara, o Museu do Homem Americano e o Museu da Natureza? Que tal então ficar de olho nos sites deles?
Bora lá acompanhar:
Site
Facebook –Museu da Natureza
Instagram – Museu da Natureza
A Vozes
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