“Eu faço isso a minha vida inteira, desde os nove anos. Minha mãe era paneleira e me ensinou ainda menina. Eu nunca mais parei”. Enquanto falava, a artesã Valdineia Lucidato transformava, com habilidade, o barro em uma pequena panela. Ela, assim como a maior parte das mulheres que se dedicam à atividade, faz parte de uma história de mais de 500 anos na feitura de panelas de barro. Com origem nos povos das tribos Tupi-guarani e Una, que habitavam a região, o ofício se consagrou como uma atividade feminina e familiar, ensinada de mãe para filha há séculos.
No grande galpão no bairro das Goiabeiras, mais de 100 paneleiras tiram o sustento da produção e venda das tradicionais panelas de barro do Espírito Santo. Reformado em 2011 pela Prefeitura de Vitória, o lugar é uma das mais concorridas atrações turísticas da capital capixaba. É difícil encontrar um visitante que não queira levar para casa uma das famosas panelas ou apenas conhecer o trabalho das artesãs.
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Valdinéia no galpão das Paneleiras
No passado, as paneleiras desempenhavam suas atividades em casa ou em terreiros, sem nenhuma orientação comercial ou de sustentabilidade. O galpão antigo foi construído há cerca de 30 anos, em frente ao mangue de onde elas retiram o tanino usado para dar cor às peças. O lugar era simples, com chão de barro e cerca de tela. Com a reforma de 2011, elas ganharam balcões e balanças ergométricas, que evitam, por exemplo, problemas e dores na coluna.
Izolina Passos, gestora do Programa Sebrae de Artesanato, acredita que além de uma melhora na qualidade de vida no trabalho, as mudanças e investimentos trouxeram auto-estima para as artesãs. Desde 2002, o modo de produão das panelas é considerado um Bem Cultural de Natureza Imaterial e titulado como Patrimônio Cultural Brasileiro. O reconhecimento fez com que as próprias profissionais enxergassem seu trabalho de outra forma. No ano passado, a presidente da Associação das Paneleiras das Goiabeiras, Berenice Nascimento, foi uma das quinze agraciadas do prêmio Mulher Artesã. “Hoje elas dizem que têm orgulho de serem artesãs”, conta Izolina.
O processo de produção
“Depois que pega o barro e puxa a panela, ainda demora uns dois ou três dias para ficar pronta pra venda”, explica Valdinéia. O processo de produção artesanal mudou muito pouco em quatro séculos. Além do valor cultural dessa tradição, a venda das panelas de barro, é a principal fonte de sustento de muitas famílias de artesãs.
Tudo começa no Vale do Mulembá, no bairro Joana D’Arc, onde o barro é extraído. Quando chega ao galpão das paneleiras, é preciso livrá-lo de pedras e areias que podem ter vindo juntas no processo de extração. Para dar forma à panela, as artesãs não utilizam torno. Todo o processo é manual, contando apenas com a ajuda de pedras lisas ou cascas de coco. Depois, é preciso colocar a peça para secar e dar o acabamento, retirando excessos e polindo. Para dar a coloração escura, as artesãs utilizam o tanino da casca das árvores do mangue próximo ao galpão. A panela ainda passa por uma queima a 800ºC e por um banho de água fria antes de ir para os estandes de venda.
As panelas custam a partir de R$5. Os formatos são os mais variados e cada uma serve para uma utilidade diferente: são panelas de arroz, feijão, pirão, moqueca, ou mesmo as assadeiras para a torta capixaba. “Além de serem um artesanato tradicional, as panelas de barro são utilitárias. São nelas que os pratos mais típicos do Espírito Santo são preparados”, explica Izolina. Quem quiser moldar sua própria panela pode pagar R$6 reais no Galpão das Goiabeiras, mas não se iluda: é bem mais difícil do que parece. Para fazer uma panela de barro perfeita são necessários anos de experiência.
Riscos para o futuro
“Eu não acho que isso aqui vai continuar, não. As meninas de hoje não querem saber disso aqui, preferem estudar. E elas tão certas, né? Se pudesse, ia querer estudar também, pra ser médica, advogada. A vida de paneleira é muito difícil”, conta Valdinéia. A preocupação dela é também a de outras paneleiras, que já se reuniram para pensar uma solução e não deixar essa arte morrer.
Apesar de ser tradicionalmente um ofício passado de mãe para filha, Berenice Nascimento, presidente da Associação, acredita que seja hora de expandir a divulgação da técnica para que a arte seja preservada. “Estamos pensando em montar um projeto para dar cursos para a comunidade, já que os filhos das paneleiras estão encontrando outras formas de sustento”. Ainda sem nada concreto, Berenice acredita que cursos e oficinas direcionados para crianças, escolas e outros interessados podem ser uma boa forma de perpetuar a arte das paneleiras. “Só não podemos é deixar essa cultura morrer. A tradição das panelas de barro faz parte da história do Espírito Santo”.
*Este post é o primeiro da série Turismo e Desenvolvimento. A viagem ao ES foi um convite da Secretaria de Turismo do Espírito Santo e do Sebrae.
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Olá! Linda matéria sobre as paneleiras. Um dos meus sonhos culinários é fazer uma moqueca em uma dessas panelas. Afinal, culinária e viagem tem uma relação muito íntima pra mim. Obrigada pelos posts, o site de vcs tem muita qualidade, vai além das curiosidades sem conteúdo que estão tão na moda hoje. Um grande abraço.
Obrigada pelo comentário tão gentil, Jadna!
Abraços!
Interessante, tomara que consigam encontrar um jeito de dar continuidade e valorizar ainda mais essa arte. Eu tenho uma tia que coleciona essas panelas artesanais, não necessariamente essas do ES, mas onde ela vai e encontra algo do tipo, ela compra HAHA! É sempre muito bom conhecer a forma e a história de como foram produzidas as coisas, o Brasil é muito rico nisso.
Também espero que elas encontrem uma forma, Gabriel. É um tradição muito rica para simplesmente morrer assim.
Abraços!