No século 16, Portugal vivia sob as duras regras da Inquisição. O poderoso tribunal religioso julgava, punia, censurava a população, confiscava seus bens e mandava gente para a fogueira. Dentre os hereges perseguidos, estavam os cristãos-novos. Esse era o nome dado para os judeus convertidos ao catolicismo. Eles eram observados de perto, para garantir que cumpriam a sua nova fé. É claro, existia um movimento de resistência.
No Norte de Portugal, num cantinho chamado Mirandela, uma vila na montanhosa região de Trás-os-Montes, os cristão-novos tentavam manter sua fé original escondida – era o que se chamava de criptojudaismo. Um revés para os criptojudaicos é que, na época, todas as casas costumavam ter pendurados no teto os famosos enchidos portugueses: linguiças, chouriços, morcela. O problema: judeus não comem porco. E, consequentemente, seria muito fácil para os informantes da inquisição identificar as famílias sem linguiças.
Reza a lenda que alguém em Mirandela teve a brilhante ideia de inventar uma linguiça enchida com pão, alho, azeite, gordura e carnes de caça ou frango. A tal linguiça diferenciada, pendurada no teto, era o disfarce perfeito para aqueles que não comiam porco. O nome dado para a iguaria: alheira, que ficou tão famosa que até saiu em matéria da BBC.
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Alheira. Foto: Shutterstock
A história dos judeus e judiarias em Portugal
Já existiam judeus em Portugal muito antes da suposta criação da alheira. Desde a época do Império Romano, para ser mais exata. Porém, foi nos séculos 12 e 13, para povoar o país recentemente formado, que o número começou a crescer. As regiões próximas à fronteira com o Reino de Castela, como Trás-os-Montes, no norte; e as Beiras Interiores, nos arredores da Serra da Estrela; concentravam muitas comunidades.
Os judeus, inclusive, estabeleciam suas áreas específicas de habitação, as judiarias. Eram espaços administrativos e religiosamente autônomos, de acordo com o historiador Fernando Rosas, que fez um documentário sobre o tema para o canal português RTP. Chegaram a existir mais de cem espalhadas pelo território, inclusive três em Lisboa. Os reis de Portugal, apesar de pressões papais, promoviam uma política de tolerância, exatamente porque os judeus eram uma força produtiva e colonizadora, trabalhavam como artesãos, alfaiates, marceneiros, comerciantes. E, ao mesmo tempo, Rosas afirma, aqueles judeus que eram mais ricos e cultos moravam nas grandes cidades, atuavam com excelência como gestores financeiros, grandes mercadores, cientistas, médicos e astrônomos, entre outras funções. Eles foram imprescindíveis para que os reis da primeira dinastia portuguesa tivessem sucesso, eram seus conselheiros e investidores.
Hoje em Portugal há uma Rede de Judiarias espalhada pelo país
Mesmo assim, cedendo a pressões, em 1465, no reinado de D. Afonso V, as judiarias foram guetizadas. Segundo o decreto real, explica o historiador, elas deveriam ficar num espaço limitado das cidades, protegido por muros e portões, que eram abertos no nascer do dia e fechados no final. Regras como proibição de judeus em cargos públicos ou obrigatoriedade de usar peças de vestuário que os identificassem também surgiram ao longo desses anos.
Porém, a vida dos judeus na península ibérica sofreu um verdadeiro golpe quando os reis católicos, D. Isabel e D. Fernando, em 1492, obrigaram os judeus de Castela e Aragão a escolher entre converterem-se ao cristianismo ou serem expulsos da Espanha. Essa era a época das Grandes Navegações e os judeus exerciam em Portugal um papel importante nos descobrimentos, colaborando com a abertura de novas rotas marítimas e comerciais. Esse foi o motivo principal, segundo Rosas, para que D. João II, rei de Portugal, permitisse a entrada dos refugiados em território português. O número superou 120 mil pessoas, segundo o site oficial da Rede de Judiarias. Alguns foram para ficar e outros utilizaram Portugal como local de passagem.
A entrada, porém, não era de graça. Um artigo no jornal português Observador explica que os judeus espanhóis precisavam pagar uma taxa em troca do salvo-conduto de oito meses. Profissionais de áreas úteis para economia portuguesa, como ferreiros, carpinteiros, oleiros e tecelões, tinham desconto.
Além disso, D. João II prometeu navios para levar quem quisesse para outros cantos. Só não contou para os judeus que os tais outros cantos seriam colônias africanas hostis, como Tânger e a Arzila. Para piorar a situação, já no ano seguinte, um decreto real ordenou que os filhos mais novos fossem retirados dos pais e enviados para São Tomé, uma colônia que precisava ser povoava. As crianças viraram, literalmente, comida de crocodilo. Quem sobreviveu morreu de fome.
Rua de antiga judiaria e sinagoga em Castelo de Vide, Alentejo
Dois anos depois, o rei morreu e quem subiu ao trono foi seu primo e cunhado, D. Manuel I. Após um ano de reinado, desejando estreitar suas relações com Castela, propôs casar-se com D. Isabel, que era filha mais velha dos reis católicos espanhóis. A condição determinada para o casamento foi: expulse os judeus.
Em novembro de 1496, o casamento aconteceu. E, já no mês seguinte, veio a ordem de expulsão do povo, que teria que sair do país até o próximo ano. As judiarias deixam de existir a partir daí. Mas, D. Manuel I também sabia da importância do povo judeu, suas riquezas e conhecimentos, para o reino.
O decreto real definia que os judeus seriam mortos e teriam bens confiscados caso permanecessem em Portugal, mas o Rei acabou voltando atrás e disse que quem se convertesse poderia permanecer no país. Assim surgiram os cristão-novos portugueses. D. Manuel obrigou que os judeus menores de 14 anos fossem entregues a famílias cristãs. E restringiu os números de portos de embarque para quem quisesse sair, obrigando a concentração em Lisboa.
O motivo? Quando cerca de 20 mil pessoas estavam reunidas no Palácio dos Estaus, em Lisboa, local onde hoje fica o Teatro Nacional D. Maria II, na praça do Rossio (foto acima), muitos foram forçados a se converterem, sendo batizados contra a vontade. Nessa confusão, vários fugiram e se suicidaram.
Aqueles que ficaram e não foram batizados tornaram-se escravos do Rei, mas uniram-se com uma proposta para a coroa: aceitariam a “nova fé”, mas queriam a restituição de seus filhos e a garantia de que suas práticas religiosas não seriam questionadas por 20 anos. D. Manuel I aceitou as propostas e foi assim que surgiu o criptojudaismo, que era a prática clandestina da religião.
Um dos melhores exemplos de criptojudaismo ocorreu em Belmonte, uma vila no pé da Serra da Estrela, onde nasceu Pedro Álvares Cabral. Ali viveu a comunidade de judeus mais antiga da Península Ibérica, que conseguiu preservar seus ritos, orações e relações sociais por 400 anos. Como? Veja bem, os cristãos-novos de Belmonte continuaram a se casar entre si e conservavam as tradições completamente escondidas. A mãe passava para os filhos os ensinamentos, enquanto mantinham uma fachada de “normalidade cristã”.
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Sinagoga em Belmonte
Ao mesmo tempo, vários judeus – com toda razão – duvidaram da palavra do Rei. Parte da comunidade resolveu juntar suas trouxas e sair do país, entre eles os mais ricos. Claro que o Rei não gostou nada disso e, em 1499, publicou leis para tentar impedir a fuga de fortunas: o negócio entre judeus estava proibido, o casamento entre cristão-novos também não seria permitido e eles não podiam sair do país sem a autorização régia, sob pena de confisco dos bens.
Essa tentativa de integração forçada obviamente não funcionou. Segundo a historiadora, Maria José Ferro Tavares, a maioria cristã, a essa altura, já tinha um forte sentimento anti-judaico. E, ao mesmo tempo, os cristãos-novos, mesmo sendo uma minoria, estavam entre os mais ricos do país. Após a conversão, os donos de grandes fortunas passaram a ter acesso, antes proibido, à nobreza, à administração e às universidades.
Os massacres em Lisboa e a Inquisição em Portugal
Até então, porém, os grandes atos de violência contra a população judia vinham da corte. Isso mudou na Páscoa de 1506. Era um período em que a peste assolava Lisboa. Uma confusão na comemoração de um milagre na Igreja de Santo Domingos levou um cristão-novo a ser arrastado e assassinado por uma multidão, que em seguida também matou o irmão da vítima numa fogueira. No meio da confusão, dois frades dominicanos começaram a discursar contra a comunidade judaica, incitando a população lisboeta a agir. Então, começou um massacre. Durante três dias, o povo, atiçado pela pregação dos padres, matou, estuprou e jogou na fogueira milhares de pessoas, arrastando-as de suas casas. Cerca de duas mil pessoas morreram no massacre.
Memorial no Largo de São Domingos, em Lisboa. Crédito: Shutterstock
Apesar de terem havido punições aos culpados pelo massacre, infelizmente, não demorou muito para que mandar judeus para a fogueira viesse a ser uma decisão real institucionalizada. Em 1536, já no reinado de D. João III, foi instituído o Tribunal da Santa Inquisição em Portugal.
Durante os 225 anos seguintes, os inquisidores espalharam seus poderes por Portugal e vários judeus fugiram para o Brasil. A historiadora brasileira Anita Novinsky, que escreveu o livro “Os judeus que construíram o Brasil”, afirma, numa entrevista ao jornal O Globo, que a inquisição era um órgão político que se revestia do pretexto religioso. A instituição não tinha outra fronte de renda que não fosse o confisco de bens. Porém, ao mesmo tempo que eles acumulavam as riquezas dos homens e mulheres que iam para a fogueira, Portugal foi entrando em decadência, visto que a leitura e os estudos científicos foram proibidos.
A Inquisição Portuguesa só perdeu forças na época do Marquês de Pombal, explica Fernando Rosas, no documentário Os judeus e a inquisição em Portugal. Ciente da importância econômica dos judeus para o país e nada feliz com a força da igreja no governo, ele conseguiu convencer o Rei a proibir o confisco de bens por parte da inquisição e barrar leis que pregavam a discriminação dos cristãos-novos.
A comunidade criptojudaica de Belmonte foi reconhecida internacionalmente em 1989. Uma sinagoga foi inaugurada na vila nos anos 90. Nos anos 2000 foram abertos um cemitério judaico e o Museu Judaico, que conta a história de como eles sobreviveram.
Museu Judaico em Belmonte
No Largo de Santo Domingos, em Lisboa, há um monumento em homenagem às vitimas do massacre. Além disso, em 2013, o congresso em Portugal aprovou uma lei que permite que judeus descendentes daqueles que foram expulsos do país séculos atrás pudessem se naturalizar portugueses. Foi o segundo país do mundo a aprovar tal lei, até então existente apenas em Israel. Claro, poderosas razões econômicas motivaram a decisão.
Alheira, uma das maravilhas de Portugal
Também foi em 2013 que a Alheira de Mirandela foi certificada oficialmente pela União Europeia com a Indicação Geográfica Protegida (IGP). O selo protege os produtores locais: Só pode ser chamada de Alheira de Mirandela aquela feita nesse local, seguindo os métodos tradicionais de produção.
A alheira (amarelada) e os demais enchidos portugueses
Na verdade, há quem diga que os judeus já produziam seu próprio tipo de embutido muito antes da Inquisição. Ou que a cor da alheira, tão diferente das linguiças de porco, chamaria a atenção de informantes na mesma.
Independente disso, a moda pegou. Além da certificação europeia, a alheira é comum em mesas portuguesas e é considerada uma das 7 Maravilhas Gastronômicas de Portugal. O único revés é que muitos judeus já não podem mais comer a iguaria. É que a alheira mudou de lá para cá e, hoje em dia, o porco faz parte da receita.
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BOA TARDE! Parabéns, fiquei encantada e fascinada com tda essa história, confesso que tinha pouco conhecimento. Sou descendente de Portuguêses e meu esposo de Judeus. Desde já agradeço pelas informações que são importantes e relevantes.
Que bom que gostou Elineide!
Na verdade os judeus ainda podem apreciar a alheira! Uma das variedades atuais, e talvez a mais próxima à alheira original, é a alheira com carne de caça, sem carne de porco! Ela possui um sabor bem mais forte e marcante, característica das carnes de caça.
Verdade Eduardo, mas tem muita alheira com carne de caça que também tem carne de porco no meio. Tem que saber bem quem é o produtor
nao conhecia a historia da aheira obrigada.
vou ir a Portugal junho 24 deste ano gostaria de saber se posso ir de comboio de lisboa para albufeira e se facil alugar taxi para o meu hotel.
Oi Orlanda,
desculpe a demora para responder.
Sim, você consegue ir de Lisboa a Albufeira de trem. É uma viagem de 3 horas. E sim, é tranquilo conseguir táxi em Portugal
Sou descendente de portugueses e adoro alheira, não conhecia a estória do surgimento dessa iguaria! Obrigada por compartilhar!
=)
Adoro alheira e sua matéria me deixou com a boca cheia de água. Infelizmente aqui no Brasil só se encontra alheira em casas tradicionais portuguesas e, na minha cidade, Vila Velha, Espírito Santo, não existe um só lugar onde a vendam. De qualquer maneira, uma beleza sua matéria. Obrigado e…continue dormindo nos aeroportos. Leo
=D
Nossa! Muito obrigada por compartilhar uma história tão interessante e importante. Amo as histórias desse mundão!
obrigada por comentar Shirley!