Na primavera de 1921, Mollie Burkhart saiu de casa para a mais triste das tarefas: reconhecer o corpo da irmã Anna, que tinha sido encontrado perto de um riacho. Um buraco de bala na nuca de Anna aumentou a dor de Mollie, que nos anos seguintes se acostumou a viver com medo.
É que outra irmã dela, Minnie, tinha morrido de forma misteriosa anos antes, enquanto a mãe, Lizzie, faleceu alguns meses depois de Anna, também de maneira suspeita. Dois anos mais tarde foi a vez de Rita, a terceira irmã, partir deste mundo, junto com o marido. Uma bomba explodiu a casa onde os dois viviam.
Mollie, Anna, Rita, Minnie e Lizzie eram osages, nativos americanos que naquela época habitavam o estado de Oklahoma, nos Estados Unidos (Oklahoma significa, numa tradução livre, “o povo vermelho”). Na década de 1920, pelo menos 24 osages foram assassinados, mas esse número certamente foi bem maior.
Um método comum de assassinato era por envenenamento, e com isso dezenas de mortes acabaram sendo registradas como tendo sido causadas por doenças desconhecidas. Quem tentava desvendar a série de crimes frequentemente também encontrava um final trágico, fosse por veneno, por bala de revólver ou ao ser arremessado para fora de trens em movimento.
Casa de Rita e seu marido, destruída por uma bomba
“Essa terra está empapada de sangue”, disse uma descendente dos osages ao jornalista e escritor norte-americano David Grann, que contou essa história no livro Assassinos da Lua das Flores, lançado no Brasil pela Companhia das Letras. No livro, o jornalista resgata a história da tribo – que tinha sido esquecida até mesmo em Oklahoma – e explica como a sociedade norte-americana criou um método para eliminar famílias inteiras de osages.
O motivo? Dinheiro. É que os osages entraram no século 20 com um título improvável: os cerca de dois mil membros da tribo eram donos da maior riqueza per capita no mundo.
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Marcha para o Oeste
Os osages são alguns dos mais antigos moradores dos Estados Unidos. Quando os conquistadores chegaram e passaram a marchar para o oeste, os nativos americanos foram, pouco a pouco, empurrados para outras terras. Em 1870, os osages viviam numa grande área do Kansas, mas acabaram se mudando dali para uma região árida e montanhosa de Oklahoma – essa foi a única nação indígena que conseguiu comprar seu próprio território: eles pagaram 1,70 dólar por hectare.
“Meu povo será feliz nessa terra. O homem branco não pode pôr ferros no solo aqui. O homem branco não virá para esta terra. Aqui há muitas montanhas (…), o homem branco não gosta da terra onde há montanhas, e não virá. Se meu povo for para o oeste, onde a terra é como o piso de uma cabana, o homem branco virá a nossas cabanas e dirá: ‘Queremos sua terra’. E em pouco a terra acabará e os osages não terão lar”.
Wah-Ti-An-Kan, chefe osage, citado em Assassinos da Lua das Flores
O êxodo para as novas terras foi complicado. “O ar se enchia do pranto dos velhos, que se lamentavam sobre a sepultura dos filhos, que estavam deixando para sempre”, relatou uma testemunha num documento relembrado por David Grann. O começo no novo lar foi marcado pela fome e pela pobreza. A situação mudou completamente nas décadas seguintes, quando alguns dos maiores campos de petróleo dos Estados Unidos foram descobertos dentro do território que tinha sido adquirido pelos osages.
Empresários de todo o mundo iniciaram uma corrida pelo ouro, que ali era negro e líquido. Leilões milionários eram efetuados para liberar o direito de exploração do petróleo. E os osages recebiam royalties por isso, acumulando uma riqueza impressionante. Por volta de 1920, os dois mil índios restantes eram donos de uma fortuna que hoje equivaleria a 400 milhões de dólares. Numa época em que a indústria automobilística explodia e rodovias eram traçadas de norte a sul do país, cada membro da tribo tinha cerca de 11 carros – a média no restante dos Estados Unidos era de um veículo para cada 11 habitantes.
Cabanas foram trocadas por mansões e homens e mulheres brancos migraram para o interior de Oklahoma, onde trabalhavam de empregados domésticos, cozinheiros e motoristas dos osages. Boatos alimentavam a fama da tribo. Diziam, por exemplo, que quando o pneu do carro de um osage furava, ele tratava logo de comprar outro veículo e abandonar o anterior.
Não demorou para que jornais pedissem que algo fosse feito para controlar a riqueza dos índios. Segundo David Grann, a Harper’s Monthly Magazine chegou a protestar – e note que a riqueza dos empresários petroleiros, em sua maioria homens brancos, não incomodava a ninguém:
“Onde isso vai parar? A cada vez que se perfura um novo poço, os índios ficam muito mais ricos. Os osages estão ficando tão ricos que será preciso tomar alguma providência”.
A discussão chegou ao Congresso dos Estados Unidos, onde um investigador do governo chamou o território indígena de Sodoma e Gomorra. E sentenciou: “Qualquer branco do condado de Osage poderá lhes dizer que os índios estão ficando incontroláveis. É chegada a hora de começar a restringir esse dinheiro ou de afastar de nossos corações e de nossa consciência toda esperança de transformar o índio osage num cidadão de verdade”.
Não demorou para que o governo resolvesse intervir. Os osages passaram a ser tratados como crianças e perderam o direito de administração de suas vidas. Cada osage era avaliado por uma comissão, que determinava se a pessoa tinha condição de fazer as próprias escolhas ou se precisava de um curador. Em geral, a intervenção era certa – e o curador era quase sempre um homem branco. Aos osages, o próprio dinheiro passou a ser negado.
“Queremos nosso dinheiro agora. Ele nos pertence. É nosso, e não pretendemos que nenhum autocrata o retenha e nos impeça de usá-lo. É uma injustiça com toda a tribo. Não queremos ser tratados como um bando de crianças. Somos homens capazes de cuidar de nós mesmos”.
Declaração de chefe Osage para um jornal da época
Da riqueza para a necessidade foi um pulo, já que os curadores recusavam aos osages dinheiro até pelas coisas mais básicas, de cuidados médicos à alimentação. Quando o dinheiro era liberado, muitas vezes ocorriam desvios. “O dinheiro os atrai e ficamos totalmente indefesos. Eles têm as leis e toda a máquina ao seu lado. Diga a todo mundo, quando você escrever sua reportagem, que eles estão escalpelando nossa alma aqui”, declarou um osage a um jornalista da época.
Como os osages não podiam vender suas terras, outra medida que teoricamente serviria para protegê-los, o direito aos royalties do petróleo só poderia ser herdado, por pessoas de dentro ou de fora da tribo. Estava aberta a temporada de assassinatos.
A investigação dos crimes contra os Osages e o FBI
As autoridades de Oklahoma nunca tentaram realmente descobrir quem eram os assassinos. Para piorar, coisas estranhas aconteciam: a bala que matou Anna desapareceu dentro do crânio dela e pistas falsas levavam a prisões que não se sustentavam. Com medo de ser a próxima vítima e buscando justiça, Mollie e outros membros da tribo contrataram detetives particulares, mas os avanços continuavam tímidos.
Após muita pressão na capital do país, o governo federal resolveu entrar na investigação. E quem comandava tudo era John Edgar Hoover, diretor de uma agência que tinha sido criada anos antes, mas que até aquele momento tinha muito pouco poder de fato – era o Federal Bureau of Investigation, o FBI. Na década de 1920, a jurisdição da agência era extremamente limitada. Foi por isso que Hoover viu no caso dos osages uma oportunidade: crimes cometidos dentro de reservas indígenas eram um dos poucos casos que estavam na alçada do FBI.
O FBI enviou vários agentes, muitos deles à paisana, e aquele se tornou o primeiro grande caso da agência. Eles eram liderados por Thomas White, um lendário investigador do Texas. Ao seguir o dinheiro e determinar quem estava lucrando com as mortes, os investigadores encontraram um rastro de provas e evidências de que havia um método por trás de tudo aquilo. O fazendeiro William King Hale, um dos homens mais poderosos da região, acabou sendo preso e julgado. O sobrinho dele, Ernest Burkhart, era marido de Mollie.
Mollie Burkhart Image by © Bettmann/CORBIS
Ao planejar as mortes da família osage de forma detalhada, pensando inclusive na ordem dos assassinatos, Hale fez com que Mollie se tornasse uma das pessoas mais ricas de um condado já milionário – ela tinha herdado os direitos ao petróleo que eram da mãe e das três irmãs. Agora, toda essa fortuna era controlada pelo curador de Mollie, que era Ernest. A morte da mulher era a próxima etapa do plano, afinal Ernest era o marido e herdeiro dela. Com saúde frágil, havia evidências de que ela já estava sendo envenenada.
“Fico debatendo na cabeça se esse júri está julgando um processo de homicídio ou não. Para eles a questão consiste em decidir se o fato de um branco matar um osage é assassinato ou apenas crueldade com animais”.
Um homem osage, em entrevista para um jornal da época
Durante o julgamento, Ernest Burkhart assumiu sua participação nos crimes e testemunhou contra o tio, o que foi fundamental para que ele e William King Hale fossem condenados – as penas eram perpétuas, mas alguns anos mais tarde eles acabaram sendo perdoados por políticos e terminaram suas vidas em liberdade.
William King Hale, o mandante de alguns assassinatos
Mas, para David Grann, não é isso que assusta. Por mais que Hale e seu sobrinho tenham praticado uma lista interminável de crimes, eles não foram responsáveis por todas as dezenas de mortes que ocorreram na mesma época e provavelmente pelo mesmo motivo: transferir a herança milionária dos osages para pessoas de fora da tribo.
A investigação do jornalista revelou que muitos assassinos nunca foram encontrados e que havia uma organização tácita da sociedade para eliminar os índios, com ajuda de médicos, agentes funerários, policiais e políticos.
“Nos empurraram para um fim de mundo, a parte mais árida dos Estados Unidos, pensando: ‘Vamos levar esses índios para aquele monte de pedras e deixá-los num canto’. Agora que o monte de pedras vale milhões de dólares, todo mundo quer ir para lá e pegar um pouco do dinheiro”.
Bacon Rind, um chefe osage, ao Congresso dos Estados Unidos
Os osages ainda recebem direitos pela exploração de petróleo em seu território. Mas com as décadas de uso, as reservas praticamente acabaram e hoje o dinheiro é pouco e não deixa ninguém rico. Os túmulos dos índios assassinados e um museu são recordações dessa época de medo.
Para saber mais: Assassinos da Lua das Flores, de David Grann (Companhia das Letras, de R$ 35 a R$ 50). Os direitos do livro foram comprados pela Paramount, que transformará a história num filme que será dirigido por Martin Scorsese e terá Leonardo DiCaprio no elenco.
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