Sentado no meio do galpão e cercado por pedaços de madeira de todas as formas e tamanhos, o carranqueiro explicava seu ofício. Ele é Francisco Soares dos Santos, mas todo mundo ali o conhece como Gago. Estamos na Oficina do Artesão Mestre Quincas, em Petrolina, um cantinho especial do sertão pernambucano.
Inaugurada no fim da década de 1980, a oficina funciona num espaço cedido pela prefeitura e envolve as duas principais associações de artesãos da cidade. Naquele local trabalham especialistas em madeira, pintura e tecido. Portanto, as carrancas podem até ser alguns dos itens mais procurados pelos visitantes, mas há muitos tipos de trabalho por ali. O tal Mestre Quincas, que batizou o ateliê, foi o primeiro artesão de Petrolina e viveu entre 1895 e 1935.
Artesão trabalha numa imagem religiosa (Foto: Fellipe Abreu)
Estivemos em Petrolina durante a produção do Origens BR, um projeto do 360meridianos que vai investigar a história – e a pré-história – do Brasil. O Origens BR conta com o patrocínio da Seguros Promo e da Passagens Promo, empresas que tornaram essa investigação possível.
O Mestre Gago garante que faz cerca de 120 carrancas por mês, embora nunca tenha parado para contar e ter certeza dos números. “A gente não conta, vai terminando e botando no salão pra vender”, diz ele. O tamanho e a complexidade das peças variam – e, claro, os preços também. Uma carranca maior e mais trabalhosa, com um metro e meio de altura, custa em torno de R$ 1500. E quando a encomenda é de uma dessas os números de Mestre Gago certamente caem, já que esse tipo de peça exige ao menos uma semana de trabalho.
Gago trabalhando na Oficina Mestre Quincas (Foto: Fellipe Abreu)
Há também carrancas menores, de 15 centímetros, e mais baratas, levadas por turistas como suvenires de viagem. “As carrancas são as peças que mais vendo, são um símbolo de Petrolina”, garante. Assim que chegamos e passamos pela lojinha, onde o trabalho dos artesãos é vendido, entramos no galpão anexo, onde as obras nascem. É a típica bagunça impressionante: teias de aranha se misturam com santos de madeira; pássaros dividem espaço com carrancas e seres mitológicos.
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As carrancas e seus significados: um mergulho no São Francisco
Dizem que elas surgiram na virada do século 19 para o 20, quando passaram a decorar as proas dos barcos que seguiam de Minas Gerais para o nordeste brasileiro, pelo Velho Chico. Petrolina e Juazeiro, cidades irmãs que desde sempre formam o maior centro urbano do sertão, logo se tornaram especialistas na produção das carrancas. Os pesquisadores não entram em consenso quando o assunto é a origem da tradição: alguns defendem que é uma herança da África; outros afirmam que o costume vem dos índios.
Em todo caso, usar figuras mitológicas nas proas de barcos não foi invenção do Velho Chico, mas é uma tradição de vários povos e períodos diferentes. Dos vikings aos chineses, bichos e caretas de todos os tipos já eram tendência entre os navegadores mais antigos. No Brasil, as figuras antropomórficas, ou seja, que misturam traços humanos com os de animais, têm um significado: proteção.
Segundo Paulo Pardal, talvez o principal pesquisador do assunto e autor do livro Carrancas do São Francisco, “a origem das carrancas deve ter sido a imitação de navios de alto-mar, vistos nas capitais da Província da Bahia e do país pelos pequenos nobres e fazendeiros do São Francisco em suas viagens à civilização”.
A figura mais tradicional mistura uma grande cabeleira, olhos humanos e uma feição animalesca. As cores vermelha e preta são algumas das mais usadas, aumentando, digamos, a cara mal-humorada das figuras. Não é à toa que hoje um dos formatos mais comuns das carrancas, popularizado na década de 1970, tem um apelido: vampira. Essa versão tem um pé em Petrolina e outro no Japão, afinal foi feita pelo Mestre Bitinho, que se inspirou nas salas de cinema – ele tinha acabado de assistir ao filme A Fuga de King Kong, do diretor Ishiro Honda.
Os barqueiros acreditavam que as carrancas davam sorte, assustavam maus espíritos, tempestades, animais perigosos e naufrágios. Seres tipo o Caboclo-d’Água, um bicho “troncudo e musculoso, de pele cor de bronze”, que protege o Rio São Francisco e “assombra os pescadores e navegantes, chegando mesmo a virar e afundar embarcações”. Com uma carranca na proa do barco, um pouco de fumo para dar de oferenda e facas cravadas no fundo das canoas o Caboclo-d’Água não tinha vez – e procurava outro barqueiro para perseguir. “A carranca avisava os pecadores quando a embarcação ia a pique”, garante uma inscrição na parede da Oficina. “Ela dava um gemido forte – e era um Deus nos acuda”.
Dos barcos para os lares brasileiros foi um pulo, e logo as carrancas viraram um importante tipo de arte popular sertaneja. Hoje, protegem sítios e casas em todo o Brasil. O próprio Mestre Gago tem carrancas em casa, claro. E garante: funciona. “O pessoal entra lá em casa e olha logo pra ela. Aí pronto, se tem má intenção a pessoa já foge”.
Além de Petrolina e Juazeiro, Santa Maria da Vitória, na Bahia, e Pirapora, em Minas Gerais, têm tradição na produção das peças. Não é por acaso que todas elas estão às margens do São Francisco ou de um de seus afluentes. E o carranqueiro mais famoso era Santa Maria da Vitória: foi o Mestre Guarany, que viveu 101 anos e passou boa parte do século 20 produzindo carrancas – o trabalho dele foi descoberto pela crítica de arte e exposto pelo mundo, do MASP à Paris.
Com a modernidade e a aposentadoria dos barcos a remo e, mais tarde, dos a vapor, as carrancas foram perdendo lugar. Hoje, Mestre Gago garante que apenas quatro embarcações da região de Petrolina têm carrancas, uma delas responsável pela travessia diária para Juazeiro. Essas não são trabalhos do escultor, que tem outro orgulho: ele foi o autor de uma das sete carrancas que ficaram famosas na novela Velho Chico, da Globo.
Serviço
A Oficina do Artesão Mestre Quincas fica na Avenida Cardoso de Sá, 11, em Petrolina. A entrada é gratuita e o passeio combina com o almoço no Bodódromo, outro programa imperdível da cidade e que está a cinco minutos de carro dali. Abre todos os dias, das 07h às 17h.
Outro endereço para conhecer essa história é o Centro Cultural Ana das Carrancas, dedicado à dama do barro, Ana Leopoldina dos Santos. A artesã faleceu em 2008, mas sua casa foi transformada em espaço cultural. O local recebe visitantes, mas para isso é preciso agendar.
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