Às 22h45 em ponto, no último dia da semana do Mortos, um senhora vestida com roupas de guerrilheira e com o rosto coberto por uma maquiagem de caveira falava para um ônibus cheio de turistas. Eles também tinham os rostos pintados, alguns com mais cores, outros mais sombrios. A referência à morte, no entanto, era onipresente. Aquele era o último passeio noturno de Lendas e Catrinas do ano. Depois da meia-noite, os espíritos deixariam o mundo dos vivos para só retornarem no próximo tempo de mortos, explicou para a plateia atenta, em tom teatral, a caveira com roupas de guerrilha.
No México, a morte é vista como parte da vida. É o destino inescapável de todos os que caminham por essa terra. Os mexicanos a aceitam e, em vez de chorá-la, riem-se dela. Com ela. E é por isso que, entre os últimos dias de outubro e a primeira semana de novembro, as ruas das principais cidades do país recebem uma procissão de almas penadas. A constante lembrança de que toda vida tem um fim é eminente durante todo o ano e faz parte da cultura mexicana desde tempos pré-hispânicos, mas é durante o tempo de mortos que ela se tona mais intensa. A festa, meio católica, meio pagã, é um dos principais e mais reconhecidos traços culturais do país.
“A morte é democrática, já que, no fim das contas, loira, morena, rica ou pobre, toda a gente acaba virando caveira”, disse certa vez José Guadalupe Posada (1852-1913), um célebre caricaturista mexicano que acabou agregando um importante elemento à festividade de dia dos mortos. Ele foi o principal responsável por popularizar a imagem das Catrinas, ou, em outras palavras, as famosas caveiras mexicanas que hoje estampam camisetas, quadros, objetos de decoração e são tema recorrente no universo dos tatuadores.
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Mas antes de conquistar um lugar permanente no panteão de ícones da cultura pop – em especial quando retratada como Frida Khalo -, a caveira mexicana desempenhou uma importante função política. Durante o final do século 19 e início do século 20, o México passava por um período de transformações e instabilidade econômica e política depois de alcançar sua total independência. Esse era o momento de formação da sociedade mexicana como conhecemos hoje. De um lado, havia uma elite que, embora fosse mexicana por nascimento, se identificava mais com os valores europeus e, aos olhos de muitos, vendia sua pátria aos interesses estrangeiros. De outro, governos que não alcançavam nem popularidade nem estabilidade com decisões políticas reprovadas por grande parte da população.
Diante dessa situação, um grupo de escritores começou publicar sátiras de cunho social em diversos meios da época. Os escritos, redigidos de forma irônica, sempre vinham acompanhados de crânios e esqueletos e eram comumente veiculados nos chamados “jornais de combate”, como o El Padre Cobos, El Ahuizote e La Patria Ilustrada, que faziam duras críticas às elites e à situação do país. No meio desses escritores estava Posada, que tinha entre seus temas favoritos a desigualdade social, a miséria do povo mexicano e os hábitos da classe alta, que se agarrava ao passado e a seus costumes europeizados. Por isso, suas caveiras eram sempre retratadas como uma senhora que estava puro osso, mas que não abandonava o chapéu francês enfeitado com plumas de avestruz.
Além das elites, Posada também criticava a população de origem indígena que tentava a todo custo se parecer aos europeus em seus hábitos, estilo de vida e forma de vestir. Sua primeira figura de caveira foi batizada de La Calavera Garbancera, publicada em 1913, e é justamente uma crítica a esses indígenas que renegavam sua cultura, tradições e raízes, conhecidos na época como “garbanceros”. Graças à grande maestria do cartunista, as caveiras garbanceras caíram no gosto popular e os jornais da época começaram a publicar inúmeras versões da figura. Eram caveiras andando a cavalo, em festas, no cemitério… A sátira se tornou uma crítica comum no cotidiano da população. Ser chamado de Caveira Garbancera era uma ofensa.
Paralelamente a essas manifestações políticas, as figuras de caveiras também apareciam nas Calaveras Literarias, composições poéticas típicas da cultura popular mexicana para ironizar tanto a vida quanto a morte. Nas proximidades do dia dos mortos, esses versos eram publicados em jornais, sempre acompanhados de esqueletos.
Mas as tradicionais imagens de caveira só receberam o nome de Catrinas em 1947, quando foram interpretadas por Diego Rivera no mural Sueño de un domingo por la tarde en la alameda. A imagem que hoje está exposta no Museu Diego Rivera, na Cidade do México, buscava resgatar as mais importantes raízes da cultura mexicana. Além de resgatar a Caveira Garbanceira de Posada, foi Rivera quem batizou a imagem com a forma feminina de “catrín”, que em espanhol significava um homem elegante e bem vestido. Com isso, outros artistas mexicanos passaram a criar suas próprias versões das caveiras mexicanas, incorporando cores, formas e elementos diversos e transformando-as um dos símbolo culturais do país mais conhecidos ao redor do mundo.
Hoje, as Catrinas fazem parte do imaginário popular e já excederam os limites traçados lá atrás na utilização política e satírica da imagem. São parte inseparável da cultura local. Os mexicanos exibem orgulhosos as figuras das Catrinas em sua arte, artesanato, moda e nas famosas maquiagens usadas no dia de mortos. As Catrinas são, para eles, uma forma de honrar seus antepassados e celebrar as raízes, cosmovisão e lendas que, em conjunto, formam parte da identidade nacional.
Serviço – O tour noturno “Lendas e Catrinas”, citado no texto, é oferecido pela empresa Capital Bus nas proximidades do dia dos mortos e custa 150 pesos (R$ 30).
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