Penduradas no melhor estilo bandeirinhas de festa junina, fotos em preto e branco chamam atenção de quem passa pela Calle San Jerónimo, uma ruela no centro de Córdoba, na Argentina. É impossível não se chocar com tantos rostos, todos seguidos por datas. São alguns dos argentinos que foram sequestrados e mortos durante a ditadura militar que controlou o país.
Ditadura das mais violentas, que ocorreu entre 1976 e 1983. Operários, funcionários públicos, professores, estudantes universitários e até alunos de ensino médio foram torturados e mortos. O regime chegou a usar campos de concentração e foi inovador na hora de sumir com seus opositores. Os militares argentinos colocavam as vítimas dentro de aviões, sobrevoavam o Rio da Prata e atiravam as pessoas para a morte. Cerca de cinco mil argentinos perderam a vida assim, enquanto o número total de mortos pela ditadura gira em torno de 30 mil pessoas.
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Uma época triste. Como era esperado, o principal cenário para essas atrocidades foi Buenos Aires, capital e maior cidade do país. A história das mães da Praça de Maio, que há quatro décadas lutam para saber o paradeiro de seus filhos, ganhou o mundo. Mas a ditadura também afetou outras cidades da Argentina. Em Córdoba, segunda maior cidade do país e repleta de universidades, o rastro sangrento deixado pelos militares está por toda parte.
O clima universitário fez com que a cidade fosse um centro de resistência em outras ditaduras. O Cordobazo, um grande protesto que ocorreu em maio de 1969, apressou a saída do governo de Juan Carlos Onganía e, anos mais tarde, ajudou na volta da democracia. Pena que durou pouco. Quando os militares tomaram o poder, em 1976, era claro que Córdoba daria problemas.
Para o jornalista e escritor argentino Ceferino Reato, Córdoba foi o laboratório onde a ditadura de 76 começou – e também onde os primeiros conflitos ocorreram. “Essa província sempre teve um poder de antecipar e de alguma maneira mostrar o que depois ocorreria em todo o país”, diz ele, numa entrevista ao site Ellitoral.
Logo no início do regime, Córdoba testemunhou os fuzilamentos de 29 presos políticos. Anos mais tarde, vários militares foram condenados por esse ato, entre eles o ex-presidente Jorge Rafael Videla, um dos ditadores do país. Ele morreu no presídio, aos 87 anos, enquanto cumpria a pena de prisão perpétua. Os fuzilamentos ocorreram numa Unidade Penitenciária da cidade.
E esse não é o único lugar marcado pela ditadura em Córdoba. No coração da cidade, exatamente naquela rua citada no começo do texto, ficava o Departamento de Inteligência, uma divisão da polícia que tinha a função de sequestrar e torturar opositores do regime. Os filhos deles eram sequestrados e dados para outras famílias, muitas vezes de militares, que criaram os filhos dos opositores como se fossem seus. Até hoje, estima-se que centenas de argentinos vivam sem saber que foram sequestrados pelo estado, o mesmo governo que também matou seus pais.
Hoje o prédio onde ficava o Departamento de Inteligência, também conhecido como D2, virou um espaço dedicado às vítimas da ditadura. É o Museu da Memória, que está repleto de fotos das vítimas e conta a história do regime. Vale a pena visitá-lo.
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Do lado de fora da cidade fica La Perla, um centro clandestino de detenção que era controlado pelo exército e que tinha a função de auxiliar no desaparecimento de opositores da ditadura. Em resumo, nada muito diferente dos campos de concentração nazistas.
Chamada de “o inferno cordobés”, lá ocorreram torturas, estupros e assassinatos. Segundo a Wikipédia, todas as prisioneiras do sexo feminino eram estupradas frequentemente. A internet está repleta de depoimentos de pessoas que foram torturadas em campos como esse. Um deles, contado por um sobrevivente, diz o seguinte: “Por vários dias fui submetido a todos os tipos de tormentos. Soco, chute, pancadas com borracha e varas, asfixia com água ou sacos de nylon, tudo fruto do engenho sinistro dos torturadores. Várias vezes eu fui pendurado num poste. E fiquei cinco noites amarrado nu à uma cama de metal, enquanto tomava choques elétricos por todo o corpo”.
Em 2007, o antigo campo de La Perla foi desmilitarizado e entregue para organizações de direitos humanos. O objetivo é cuidar da memória, garantindo que a história não se repita.
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Ei Rafael! Na Argentina e Chile há uma transparência muito maior q no Brasil, né. Em Santiago visitei o Museo de Los Derechos Humanos tb e me impressionei. É chocante, estive lá quatro vezes para vc ter ideia. Realmente vale a pena a visita.
Bjs
Verdade, Carla. A gente ainda caminha lentamente nessa direção.
Em BH começaram a surgir memoriais sobre a ditadura militar, mas tudo ainda é muito tímido.
Abraço.