Era nossa segunda noite em Quito. Fomos jantar no Belle Époque, um restaurante renomado que fica no Hotel Plaza Grande, no centro. Eu e o grupo de jornalistas e blogueiros com quem viajei para o Equador conversávamos distraídos, aguardando a sobremesa. As luzes se apagaram, deixando o ambiente à luz de velas. Sinos ressoando bem alto deixaram todo mundo confuso. Pelo vidro espelhado da janela, eu vi chegar em meio à fumaça uma figura alta, de capuz em forma de cone, rosto coberto e uma túnica roxa. Pensei: é agora que eu morro.
Mas o pânico durou menos de 10 segundos. O som de sinos deu lugar a uma música mais alegrinha, com instrumentos típicos de alguns ritmos latinos. O sujeito de capuz veio até o grupo, talvez para mostrar que não tínhamos motivo para ter medo. O guia de turismo que nos acompanhava, mais do que acostumado com a reação de estrangeiros, disse que aquele era o cucurucho, uma figura folclórica equatoriana.
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Passei tanto sufoco que nem consegui tirar uma boa foto na hora
Aquela encenação toda era só para trazer à mesa a sobremesa que é a especialidade do lugar: a espumilla. Parece um sorvete, mas não é. Trata-se de um tipo de merengue de fruta (geralmente de goiaba), que vem com confeitos coloridos e uma calda de fruta. No caso desse restaurante, a calda era de framboesa.
A espumilla não fez muito sucesso entre os brasileiros
Eu ainda não consegui entender muito bem a relação entre a espumilla e o cucurucho, exceto pelo fato de que ambos são símbolos da cultura equatoriana, ambos têm um cone, e ambos foram considerados meio esquisitos pelo grupo de brasileiros com quem eu estava. A sobremesa que parecia um sorvete que nunca derrete ficou lá na mesa. Quase ninguém chegou ao fim (eu cheguei, porque sou desses). Já a memória do cucurucho foi o assunto mais comentado pelo resto da viagem.
Vocês sabem o porquê, né? Gente encapuzada e ambiente iluminado exclusivamente por fogo é um gatilho para quem conhece a Ku Klux Klan, grupo supremacista branco dos Estados Unidos. E também para quem não sabe os detalhes sobre o folclore dos países que ficam aqui pertinho, na América do Sul. Por isso, resolvi pesquisar o cucurucho.
Pra começar, não tem nada de racismo envolvido. O cucurucho é um símbolo de origem religiosa. Como a maior parte dos países da América do Sul pós-colonização, o Equador é um lugar de forte tradição cristã. Na época da colônia, que começou em 1534 e durou até o início do século 19, era um costume vestir as pessoas consideradas pecadoras com a túnica e o cone roxo e deixá-las descalças, expostas nas ruas perto das igrejas. Aí a sociedade “de bem”, que não tinha pecados e era temente a Deus, tinha a função de ofender publicamente os encapuzados, para que eles pudessem, ao mesmo tempo, pagar penitência pelos seus erros e se arrepender.
Foto: Exedu/Flickr/CC BY 2.0
O tempo passou e a tradição de expor os pecadores (embora eles tivessem suas identidades preservadas) se transformou numa procissão anual, que acontece na Sexta-Feira da Paixão. Não rolam mais as ofensas públicas, mas o objetivo é o mesmo: os cucuruchos aproveitam o dia da morte de Jesus para buscar absolvição dos pecados cometidos durante o ano.
Os equatorianos levam a Semana Santa muito a sério. A procissão dos cucuruchos é um grande acontecimento e reúne milhares de figuras roxas encapuzadas pelo Centro Histórico de Quito. É tipo um enorme confessionário a céu aberto. O roxo representa a penitência e o cone representa a humildade. Alguns arrastam cruzes pesadas pelas ruas. Outros carregam no drama e usam sangue artificial para representar o flagelo. Tem até quem golpeie as próprias costas com ramos de urtiga.
A caminhada é obviamente inspirada nos últimos momentos de Jesus antes da crucificação, e são claros os elementos como sacrifício e perdão nesse ato. Na Espanha, de onde vieram os colonizadores do Equador, também há o costume de usar capuzes em forma de cone nas procissões de Semana Santa.
Na Espanha, usa-se capuzes roxos, vermelhos ou brancos, depende da região e do “papel” que a pessoa está fazendo na procissão
Depois da noite do cucurucho no restaurante de Quito, prestei um pouco mais de atenção e reparei que a figura está por toda parte. Algumas lojas vendem bonecos de plástico ou de pelúcia, e o encapuzado aparece em letreiros e nas logos de estabelecimentos da cidade. Passado o susto, deu até para achar bonitinha a tradição dos equatorianos. Descobrir como uma tradição católica se transformou num ícone cultural mesmo fora do contexto religioso foi mais uma ótima surpresa do Equador. Mas da espumilla não deu para gostar muito.
Visitamos Quito a convite da Gol, que em dezembro de 2018 inaugurou uma rota de voos diretos de São Paulo para lá. São três voos semanais em cada direção: saem toda terça, quinta e domingo, às 19:25, da capital paulista. Já o trecho Quito – São Paulo é toda segunda, quarta e sexta, com saída 00h20.
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No Brasil, temos a Procissão do Fogaréu, cujos encapuzados chamam-se farricocos. Acontece na quarta-feira santa, na Cidade de Goiás. E na sexta-feira da Paixão, em Caldas Novas, ambas cidades do estado de Goiás. É belíssima. E tem a mesma simbologia. Não se assuste. Visite as tradições brasileiras.
Olá, meu xará Otávio,
sou Guia DE Turismo, e não “Turístico”. Gostaria de esclarecer-lhe a à sua equipe que, “guia turístico” é um livro, um folheto, um flyer, …etc. Nós (homens e mulheres que guiam os turistas) somos GUIAS DE TURISMO. Somos, com orgulho, a única profissão regulamentada no Brasil na área do turismo. Portando, quando se referir a uma PESSOA, diga “Guia DE Turismo” e, quando se referir a um livro, diga “guia turístico”. Muito grato pela sua paciência em ler o comentário e pela oportunidade de esclarecer a profissão.
Abraço,
Otávio JYOTI Barroso
Guia de Turismo/MG – Cadastur – BR
Olá Otávio,
Vamos corrigir no post!
Abraço