A iraniana Niloufar Ardalan ficou bastante nervosa quando o marido a proibiu de participar da Copa Asiática de Futsal, que, em 2015, foi realizada na Malásia. A jogadora de 30 anos conhecida por ali como “Lady Goal” precisava da autorização dele para viajar para o exterior, segundo as leis do país. Mas foi negada por que, segundo ele, a mulher precisaria acompanhar o filho no primeiro dia de aula. “Como mulher muçulmana, eu queria lutar para que a bandeira do meu país fosse erguida (nos jogos); não estava viajando por lazer ou diversão”, disse ela à imprensa local.
Ao pronunciar-se publicamente sobre o direito das mulheres de participar dos eventos esportivos, Niloufar acabou fazendo parte de uma revolução silenciosa que acontece dentro e fora dos gramados iranianos. Proibido em meados da década de 1980, o futebol feminino voltou a nascer no Irã em 2005, quando foi formada a primeira seleção em décadas. Foi justo nesse ano que Katayoun Khosrowyar, uma descendente de iranianos nascida nos Estados Unidos, viajou ao país para visitar a família e acabou ficando para fazer parte da equipe. Aos 17 anos, ela já participava de competições esportivas em seu país, mas decidiu trocar a camisa por acreditar que faria parte de algo revolucionário: “Eu jogava nos Estados Unidos e, quando vim para o Irã, comecei a jogar futsal, porque não tinha futebol de campo. Eu tive sorte, porque naquele ano, fizeram a seleção e fui convidada para ficar”, contou ela à BBC.
As dificuldades enfrentadas por elas são muitas. Em 2011, durante um jogo eliminatório para as Olimpíadas de Londres, a equipe foi desclassificada por ter entrado em campo usando o hijab, o lenço muçulmano. A FIFA só alterou as regras, permitindo o uso do adereço durante as partidas em 2014, mas o mal já estava feito: com a frustração, a seleção foi desfeita e o trabalho teve que começar outra vez, mirando as Olimpíadas de 2020 e a Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2019, cuja fase classificatória acontece até dezembro deste ano.
Estima-se que, hoje, cerca de quatro mil meninas iranianas joguem futebol nas categorias juvenis, e o país conta com cinco seleções – adulta, sub-19, sub-16, sub-14 e seleção de futsal. Mais que encontrar uma atividade extraclasse, essas meninas ajudam a desafiar tabus impostos às mulheres iranianas, que vão desde a prática de esportes tradicionalmente associados aos homens até o mais básico direito de ir e vir, como na história de “Lady Goal”.
Futebol para mudar de vida
A determinação das mulheres iranianas em mudar seu país por causa do futebol é só um exemplo de como o esporte mais popular do mundo pode ser um agente de transformação na vida das pessoas. Sua influência ultrapassa em muito os 90 minutos dentro do campo: há, em torno do futebol, uma cultura esportiva que vai além das quatro linhas e faz parte do dia a dia das pessoas com uma abrangência mundial que nenhum outro esporte jamais alcançou. E é no sentimento de pertencer a uma comunidade, de ter um objetivo, uma legítima paixão por algo e a sensação de não estar sozinho que reside sua força transformadora.
Copa do Mundo para Moradores de Rua em 2014, no Chile. Foto: Homeless World Cup Fundation
É nisso que acreditam os organizadores da Copa do Mundo para Moradores de Rua, um evento esportivo mundial que, todo os anos, reúne mais de 500 pessoas em situação de rua, de mais de 50 países. Para os organizadores, o senso de empoderamento que surge da participação no evento os ajuda a descobrir como eles podem efetuar mudanças significativas em suas vidas: “Quando uma pessoa que não tem casa se envolve com o futebol, ela constrói relações, começa a trabalhar em equipe e aprende a confiar e a compartilhar. Os participantes passam a ter a responsabilidade de comparecer aos treinos e jogos, de serem pontuais e de estarem preparados. Começam a sentir-se parte de algo que é maior que eles mesmos”, dizem em sua página.
Uma pesquisa feita entre os participantes do evento de 2016, que teve como sede a cidade de Cape Town, na África do Sul, constatou que 94% deles acreditavam que a Copa do Mundo para Moradores de Rua havia impactado positivamente suas vidas. 83% disseram ter melhorado sua relação com familiares e amigos e 77% acreditavam que sua vida havia mudado positivamente a partir de seu envolvimento com o esporte. Em 2018, o evento será sediado pelo México.
O ex-morador David Duke, que fez parte da equipe escocesa de 2004, afirmou ao The Guardian que a participação no evento foi fundamental para que ele passasse a buscar uma mudança de vida. “Por causa da confiança que eu ganhei, eu percebi que, se eu quisesse alguma coisa, eu poderia conseguir”.
Futebol para curar feridas
No campo de refugiados de Zaatari, na Jordânia, a 13 quilômetros da fronteira com a Síria, o futebol é uma forma de esquecer os traumas do passado. Considerado um assentamento semi-permanente, ali já vivem cerca de 120 mil refugiados – e 400 novos chegam todos os dias. Pessoas, muitas delas crianças, que enfrentaram todos os horrores da guerra e de uma travessia perigosa para chegar até ali.
Bassam foi uma dessas pessoas. Ele costumava jogar como atacante no Izra, um time amador no sul da Síria, até que, em abril de 2013, ele teve que deixar tudo para trás quando a região na qual vivia se tornou campo de batalha entre as forças do governo e o grupo rebelde. Depois de chegar ao campo, ele passou a liderar projetos relacionados ao esporte: “As crianças chegam aqui completamente devastadas. Muitos deles viram familiares serem assassinados. A viagem até aqui é bastante difícil. Então, o que a gente faz é usar o futebol para remover o medo e dar a eles alguma sensação de normalidade. Futebol é o esporte mais popular, ele faz o papel de mãe. É a única válvula de escape que essas crianças têm. A vida aqui no campo é muito difícil e o futebol alivia o sofrimento”, diz ele para uma reportagem do The Guardian.
Abeer Rantisi é meio de campo da seleção feminina da Jordânia. No tempo livre, ela atua como técnica no projeto do Zaatari: “Em programas esportivos, o fundamental é construir auto-estima. Podemos trazer essas pessoas pra perto e dizer que elas podem conseguir qualquer coisa que queiram. Para as crianças, nos temos que torná-los resilientes. Eles estavam sofrendo na Síria e agora estão aqui. Então precisamos trazê-las de volta à vida”.
Futebol para criar líderes
Em Moçambique, mais de 50% das meninas se casam antes de completarem 18 anos e apenas 34% terminam a escola primária. Violência doméstica e abuso sexual são comuns e o país sustenta ainda o oitavo maior índice de contaminação por HIV no mundo. Poucas meninas conhecem seus direitos por ali, e as estruturas hierárquicas tradicionais ajudam a perpetuar essa dura realidade enfrentada pelas mulheres moçambicanas.
Foi pensando em mudar esse quadro que a sueca Cecilia Andrén Nyström e a moçambicana Sara ‘Sarita’ Jacob Simone criaram a ONG Futebol dá Força. Partindo do sentimento de companheirismo criado pelo esporte, elas entram em contato com mulheres locais que podem exercer um papel de líderes e as convidam para trabalharem, de forma voluntária, como técnicas de equipes de futebol formadas por meninas.
Para isso, elas passam por um treinamento que envolve workshops sobre liderança, direitos reprodutivos e sexuais e outras habilidades. A partir daí, as técnicas podem não só treinar as meninas dentro de campo, como também servirem de orientadoras em outros aspectos de sua vida. Em especial em um lugar que carece de uma educação sexual adequada, esse papel pode salvar vidas.
Para as meninas da equipe, o Futebol dá Força serve como um espaço seguro no qual elas podem se desenvolver, conversar e encontrar seu caminho. Através do esporte, elas desenvolvem suas habilidades cognitivas, auto-estima e confiança, aprendem sobre seus direitos e se sentem mais empoderadas para tomar decisões sobre seu futuro. No total, 304 líderes já foram treinadas pela ONG, o que já afetou milhares de meninas. 7378 delas participam dos jogos e assistem às palestras todos os finais de semana. Hoje a ONG atua também na Zâmbia e na Suécia.
Imagem destacada: Shutterstock, Natee K Jindakum
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