A história de uma mulher que entra escondida no exército de seu país para lutar contra invasores estrangeiros pode até lembrar o enredo de Mulan ou a vida de Joana D’Arc. Mas essa narrativa também é brasileira: Maria Quitéria de Jesus é reconhecida, desde 2018, como Heroína da Pátria, por conta do seu papel como soldada do Batalhão de Voluntários do Príncipe durante as guerras da Independência do Brasil.
“Sua vestimenta é a de um soldado de um dos batalhões do Imperador, com a adição de um saiote escocês, que ela me disse ter adotado da pintura de um escocês, como um uniforme militar mais feminino. Que diriam a respeito os Gordons e os Mac Donalds? O traje dos velhos celtas, considerado um atrativo feminino?!” – Diário de uma viagem ao Brasil, de Maria Graham.
Uma Amazona Brasileira. Atribuído a Henry Chamberlain. Acervo da Pinacoteca de São Paulo.
A escritora inglesa Maria Graham, no dia 29 de agosto de 1823, teve a oportunidade de conhecer d. Maria Quitéria de Jesus. É dos escritos em seus diários que temos um panorama mais claro de como Maria Quitéria foi parar nos campos de batalha.
Quem foi Maria Quitéria?
Nascida em 1792, em Feira de Santana, na Bahia, Maria Quitéria de Jesus foi a primeira filha de um casal de portugueses que vivia no Brasil. Seu pai era um fazendeiro rico e a menina cresceu com os irmãos e as irmãs no campo. Sua mãe morreu jovem e Maria teve duas madrastas.
Nessa época, o conceito de educação feminina era limitado às atividades domésticas: bordar, fiar e tecer. Eram raras aquelas que sabiam ler e escrever. Segundo a professora Constância Lima Duarte, escolas para mulheres no Brasil só foram autorizadas a partir de 1828.
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Apesar de analfabeta, os aprendizados de Maria Quitéria foram além da esfera do lar. Como era comum para quem vivia no interior, ela aprendeu também a manejar armas para se defender, um conhecimento que futuramente viria a ser muito útil.
Independência ou Morte: a guerra na Bahia
Independência do Brasil. Quadro de Pedro Américo. Acervo do Museu Paulista
Em 7 de setembro de 1822, o príncipe regente D. Pedro declara a independência do Brasil da coroa portuguesa. Mas não foram todas as províncias brasileiras a tornarem-se independentes sem conflitos: Cisplatina (hoje Uruguai), Bahia, Piauí, Maranhão e Grão-Pará (hoje Amazonas e Pará) viveram combates.
Na Bahia, os antigos líderes e tropas portuguesas entraram em conflito com defensores do Imperador brasileiro e também com uma ala republicana da sociedade. A Guerra do Recôncavo, ou Guerra da Independência da Bahia, foi um conflito armado que durou 1 ano e 4 meses. E levou a um cerco de Salvador e cerca de 150 mortes.
Nesse conflito de brasileiros (e ingleses) contra portugueses (e simpatizantes do colonialismo), houve a necessidade de convocar voluntários para combater a favor da causa libertária. Por volta de setembro de 1822, um desses emissários do governo foi à casa do pai de Maria Quitéria, e ela ouviu a conversa dos dois homens na hora do jantar:
“Começou ele a descrever a grandeza e as riquezas do Brasil e a felicidade que poderia alcançar com a Independência. Atacou a longa e opressiva tirania de Portugal e a humilhação em submeter-se a ser governado por um país tão pobre e degradado. Ele falou longa e eloquentemente dos serviços que Dom Pedro prestara ao Brasil, de suas virtudes e nas da lmperatriz, de modo que, afinal, disse a moça: ‘Senti o coração ardendo em meu peito’.”
Sr. Gonçalves, o pai, não compartilhava do entusiasmo da filha. Disse ao emissário que era velho e não tinha um filho para enviar à guerra. E também não pretendia dar um escravo às tropas, porque considerava que os escravos não teriam nenhum interesse ou ganho em combater pela Independência do Brasil. “Ele esperaria com paciência o resultado da guerra e seria um pacífico súdito do vencedor.”
Maria Quitéria de Jesus, ou soldado Medeiros, vai a guerra
Dona Maria então correu para a casa de sua irmã, que morava por perto. Repetiu o discurso inflamado do recrutador e exprimiu seu desejo de poder ser homem para lutar junto aos patriotas. Sua irmã compartilhou do sentimento, dizendo que se não tivesse marido e filhos, iria ela mesma se juntar às tropas.
As irmãs então puseram o plano em prática. Maria Quitéria pegou roupas do cunhado e esperou que o pai viajasse a negócios para partir atrás dele. Vestida de homem e adotando o codinome de Soldado Medeiros (o nome do cunhado), ela alistou-se no Regimento da Anilharia, mas como o soldado era fraco, acabou transferindo-se para a infantaria do Batalhão de Voluntários do Príncipe, também conhecido como Batalhão dos Periquitos, por causa da cor dos uniformes.
Retrato póstumo de Maria Quitéria de Jesus Medeiros, de Domenico Failutti
O segredo de Maria Quitéria se manteve por alguns meses. Segundo Graham: “Uma coisa é certa, seu sexo nunca foi sabido até que seu pai requereu a seu oficial comandante que a procurasse”. Apesar de ser revelada mulher, ela pode continuar na tropa. Já havia provado bravura e perícia em combate, de forma que seu comandante permitiu que ela ficasse. A partir daí, deixou de usar roupas completamente masculinas, acrescentando um saiote estilo escocês às suas vestimentas.
Segundo José Joaquim de Lima e Silva, comandante em chefe do Exército Pacificador, escreveu no Diário do Governo em 1823 sobre Maria de Jesus: “Esta mulher tem-se distinguido em toda a campanha com indizível valor, e intrepidez. Três vezes que entrou em combate apresentou feitos de grande heroísmo, avançando de uma, por dentro de um rio com água até aos peitos, sobre uma barca, que batia renhidamente nossa Tropa”.
Dona Maria combateu até o fim da guerra e derrota dos portugueses, em 2 de julho de 1823. Com o fim do conflito, foi enviada para o Rio de Janeiro para conhecer o Imperador D. Pedro I, que lhe concedeu “o posto de alferes e a ordem do Cruzeiro, cuja condecoração ele próprio impôs em sua túnica”, explica Maria Graham, que conheceu Maria Quitéria exatamente nessa ocasião.
Sobre a soldada, Graham escreveu ainda:
“Ela é iletrada, mas inteligente. Sua compreensão é rápida e sua percepção aguda. Penso que, com educação, ela poderia ser uma pessoa notável. Não é particularmente masculina na aparência; seus modos são delicados e alegres. Não contraiu nada de rude ou vulgar na vida do campo e creio que nenhuma imputação se consubstanciou contra sua modéstia (…) Não há nada de muito peculiar com suas maneiras à mesa, exceto que ela come farinha com ovos ao almoço e peixe ao jantar, em vez de pão, e fuma charuto após cada refeição, mas é muito sóbria.”
Artigos de jornais da época também elevaram os feitos de Dona Maria:
Sentinela da Liberdade, 1823
“Se não tivéssemos a Baiana Sra. D. Maria Quitéria de Jesus Medeiros, feita agora capitão do Batalhão do Imperador, que nova clorinda, mostrou ao argante Madeira quão grande é o valor do sexo feminino brasileiro (…)”
Luz Brasileira, 1829
“Ainda hoje conservamos a Ilustre D. Maria Quitéria de Jesus, natural da Bahia, que em trajes de soldado fez muitos serviços militares em 1823 e combateu a pé firme no dois assaltos e desembarques que mandou fazer o general português, o Madeira, na ilha de Itaparica.”
Maria Quitéria volta para a Bahia
Finda a guerra, como uma soldada condecorada, dizem os boatos que Maria Quitéria pediu ao Imperador que escrevesse a seu pai solicitando seu perdão e que a deixasse voltar para casa. Não se sabe se é verdade ou não. Fato é que ela eventualmente casou-se com um lavrador e teve uma filha.
Não há mais registros sobre sua vida até 1835, quando seu pai morreu e ela passou a brigar pela herança que tinha direito, mas nunca conseguiu ter acesso. A heroína brasileira morreu em agosto de 1853, cega e sem dinheiro, sendo enterrada numa lápide anônima numa igreja em Salvador.
Estátua de Maria Quitéria, em Salvador, decorada para a comemoração da Independência da Bahia. Foto: Secom Bahia
As homenagens do exército brasileiro só vieram muitos e muitos anos depois, no final do século 20.
Para saber mais sobre o tema
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Dandara foi uma guerreira fundamental para o Quilombo dos Palmares. Niède Guidon descobriu os registros rupestres mais importantes do nosso território. Indianara Siqueira é uma das lideranças mais atuantes da comunidade trans. Essas e muitas outras brasileiras impactaram a nossa história e, indiretamente, a nossa vida, mas raramente aparecem nos livros. Este volume, resultado de uma extensa pesquisa, chega para trazer o reconhecimento que elas merecem.
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Maria Quitéria sempre é lembrada aqui na Bahia, principalmente nas comemorações do 2 de julho. Fiquei feliz em ver sua história contada por aqui 🙂
Que interessante essa história. A mulher, sim, ela pode.
Bom fim de semana!
Jovem Jornalista
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Até mais, Emerson Garcia
Adorei esse artigo! É muito bom ver que existiram mulheres brasileiras participando do protagonismo da história, praticamente desde sempre, e homenageá-las.