Se as viagens são tão antigas quanto a humanidade, a literatura de viagem é tão antiga quanto a escrita. A necessidade de registrar nossas andanças pelo mundo para mostrá-la a quem não esteve lá com a gente sempre existiu: a principio, como um registro, uma documentação de um mundo ainda vastamente desconhecido. Mais tarde, ganhou contornos de literatura e poesia, relatando a história de aventureiros reais e fictícios.
As viagens nos fascinam desde sempre e não à toa sempre serviram de matéria-prima para a literatura de alguns dos maiores escritores do mundo: de Marco Polo a Homero, Júlio Verne, Jonathan Swift, José Saramago, García Márquez, Charles Darwin, Rimbaud, Jack Kerouac, Hemingway e Goethe.
No Brasil, as viagens também foram tema para nossos principais nomes da literatura: Cecília Meireles, Guimarães Rosa, Mário de Andrade, Lima Barreto, Graciliano Ramos e Euclides da Cunha falaram de viagens, para citar alguns. É por todo esse encanto criado por elas que algumas das melhores histórias já contadas são sobre viagens.
Nesse texto, falamos do que caracteriza a literatura de viagem e contamos um pouco da história do gênero.
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O que é uma narrativa de viagem?
Se engana quem pensa que literatura de viagem é um folheto de turismo. Ou um guia com dicas de onde ir e o que fazer. Ambos esses textos pertencem ao marketing de turismo e à literatura informativa. Também está bem longe de ser apenas um monte de relatos monótonos repletos de adjetivos repetitivos, estilo diário, que contamos para nossos amigos nas redes sociais.
Mas como se define, então, a Literatura de Viagem? O termo é amplo e nem mesmo estudiosos da área conseguem chegar a um consenso ou conceito exato. Por ser um gênero literário que transita entre o relato não-ficcional e a ficção e que se transforma de acordo com o contexto histórico e o objetivo do autor – vide a diferença das narrativas publicadas no período das Grandes Navegações, por exemplo, e aquelas postadas em meio digitais no século 21.
Clifford Geertz, pesquisador estadunidense, escreveu em seu livro O Antropólogo como Autor, que uma narrativa de viagem sempre se propõe a contar que “Fui aqui, fui ali, vi este fenômeno estranho e aquele outro, me surpreendi, me entediei, me entusiasmei, me desiludi, não conseguia ficar quieto e, uma vez, na Amazônia… Tudo isso com o subtexto: você não teria gostado de ir comigo? Acha que conseguiria fazer o mesmo?”
Um artigo publicado pela UFRN que analisa as narrativas de viagem no contexto da literatura ocidental afirma ainda que o gênero se caracteriza como uma escrita que contrasta as especificidades culturais do viajante e do lugar visitado, criando, assim, um diálogo entre a cultura nativa do autor e a cultura estrangeira.
Ou seja, a literatura de viagem surge da necessidade de entender o outro e tem o poder de “modificar as concepções de mundo do leitor e do próprio autor. Pois, para interpretar e representar o estrangeiro, o autor principia de seus preconceitos, estereótipos, de sua cultura, modificando-os ou confirmando-os; com o leitor, ocorre o mesmo processo, com o acréscimo da tentativa de viver imaginariamente o que não viveu de modo material”.
Para criar uma descrição viva dos locais visitados, é comum que os autores de narrativas de viagem recorram a diversas áreas de conhecimento, como a história, a antropologia, as ciências naturais e até mesmo a ficção. Isso dá ao gênero um caráter interdisciplinar, que agrega relatos sobre a natureza encontrada na região, costumes, crenças, questões políticas e comerciais, artísticas, arquitetônica e qualquer outro aspecto que tenha chamado a atenção do escritor no destino visitado.
Literatura de viagem: quando surgiu? Uma breve história do gênero
Embora o turismo como setor comercial seja uma atividade relativamente recente na história da humanidade, não é de hoje que os seres humanos lidam com a urgência de moverem-se pela superfície terrestre. E em todas as sociedades nas quais as viagens coincidiram com a escrita, os relatos de viagem estiveram presentes.
Da antiguidade até o início do século 19, tanto as viagens quanto os relatos que se produziam delas eram motivados principalmente por fins práticos. Os primeiros movimentos humanos pela Terra nasceram da busca de alimentos ou locais seguros para viver. Mais tarde, passaram a cumprir razões de Estado, missões diplomáticas, religiosas ou comerciais, como as registradas, por exemplo, no Livro das Maravilhas, de Marco Polo.
Nessa época, as estradas e caminhos marítimos eram ocupadas, em sua maioria, por comerciantes. Em menor proporção, também andarilhos, escritores e estudiosos. Mas essa razão utilitária das viagens começa a se modificar para um padrão de cunho pessoal já no século 16, quando surgem as mansões de verão na Itália e a figura dos aventureiros, e atinge seu auge com o estabelecimento do capitalismo.
O primeiro hotel de turistas, assim como conhecemos hoje, surgiu no século 18, no mesmo século que o navio a vapor e a estrada de ferro, duas invenções que facilitaram a vida daqueles que queriam apenas explorar por explorar.
Em 1841, o britânico Thomas Cook começou a organizar os primeiros tours guiados com roteiros turísticos pré-definidos dentro da Grã-Bretanha, Europa e até ao Egito. Daí foi um pulo para que, no século 19, os serviços de pacotes turísticos se popularizassem.
Foi também nessa época que surgiram os primeiros guias de viagem, impressos em diversas línguas: manuais detalhados que não apenas explicavam passo a passo como viajar, mas também apontavam paras as impressões que os visitantes deveriam extrair de cada destino. Para o turista, a viagem já não é mais uma questão de necessidade. Passa a ser uma aventura voluntária e é motivada por sua curiosidade ou desejo de lazer.
Com a mudança do objetivo das viagens, muda também a forma como a as narrativas e relatos de viagem eram produzidos. A partir daí, os textos adotam um tom menos funcional e ganham os floreios da linguagem literária, que na época seguia as tendências do romantismo, estilo predominante em grande parte do século 19.
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Narrativas de Viagem que vão mudar o que você pensava sobre o gênero
Já deu pra perceber que a literatura de viagem é ampla e dá espaço para muitos formatos, histórias e abordagens criativas, não é mesmo? Veja então alguns dos nossos livros favoritos do gênero, que vão te dar uma nova visão sobre o que significa viajar e contar:
- Box Viagens Extraordinárias (Edição comentada e Ilustrada): Os quatro romances mais importantes de Júlio Verne são sobre viagens, ainda que imaginárias. O autor, um dos fundadores da ficção científica, inspirou milhares de crianças e adultos do mundo inteiro a sonharem com aventuras que podemos viver longe de casa. Saiba mais: https://amzn.to/396E146
- Viagem ao redor do meu quarto, a curiosa expedição de Xavier de Maistre: Um oficial francês de 27 anos que, em 1790, ficou preso num quarto, por seis semanas. E foi assim que ele ficou famoso por criar uma nova modalidade de turismo: a viagem pelo quarto. Saiba mais: https://amzn.to/2XfX9qN
- Paris é uma Festa, Ernest Hemingway: Paris é uma festa mostra-nos um Hemingway diferente, o escritor e o homem fazendo uma viagem sentimental à década de 1920, quando o mundo se abria diante dele e seus companheiros eram a gente anônima das ruas. E também gente famosa, como Gertrude Stein, James Joyce, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald. Saiba mais: https://amzn.to/3nmxOWC
- Medo e Delírio em Las Vegas, Hunter S. Thompson: Imagine alugar um conversível vermelho e ter como destino Las Vegas. Imagine torrar o pagamento de uma matéria que ainda não foi feita e encher o carro de drogas de todos os tipos. Agora imagine ter ao seu lado o seu advogado, um samoano nada confiável. Pronto. Aqui está a história de Medo e delírio em Las Vegas, o livro que revolucionou as bases do texto jornalístico e transformou Hunter Thompson em um dos grandes retratistas dos ideais libertários dos Estados Unidos nos anos 1960. Saiba mais: https://amzn.to/2XdfGnA
- A Arte de Viajar, Alain de Botton: É difícil explicar exatamente do que fala “The Art of Travel”: o autor aborda diferentes aspectos e reflexões sobre viajar, como a desilusão de que não dá para fugir dos problemas nem mesmo num destino paradisíaco; ou como a jornada de avião ou trem pode ser inspiradora; ou ainda, como nem é necessário sair do seu quarto para viver aventuras. Tudo isso sob a perspectiva de grandes pensadores, escritores, poetas e pintores como Van Gogh, Gustav Flaubert ou Charles Baudelaire. Saiba mais: https://amzn.to/3q7W6Wv