O homem que garantiu que “viajar é multiplicar-se” e escreveu que “as histórias de viagem eram as de sua predileção” nunca saiu do Brasil — na realidade, Machado de Assis pouco tirou os pés do Rio de Janeiro. Seus biógrafos relatam viagens para o interior do estado, como as três passagens por Nova Friburgo, cidade onde Memórias Póstumas de Brás Cubas começou a nascer. E o mais longe de casa que Machado chegou envolveu uma passagem por Minas Gerais, que, não por acaso, é citada por ele em Quincas Borba.
O professor e escritor Arnaldo Niskier, membro da Academia Brasileira de Letras, acrescenta o humor machadiano ao contar um causo sobre as viagens do autor: “Ele mesmo, por diversas vezes perguntado onde teria ido mais longe, invariavelmente e com a ironia de sempre, respondia: ‘Petrópolis’.”
O livro Viagens Sedentárias, de Machado de Assis, foi publicado pelo Grandes Viajantes, clube literário do 360meridianos. Saiba mais sobre o projeto.
Esse sedentarismo de Machado de Assis fica ainda mais curioso quando comparado com a rotina cheia de aventuras de seus contemporâneos. Basta olhar para alguns dos escritores já editados pelo Grandes Viajantes: Nísia Floresta, Júlia Lopes de Almeida, Artur Azevedo, José Coelho da Gama e Abreu, Maria Clara da Cunha Santos e João do Rio desbravaram cantos diversos do país, pisaram em vários continentes e cruzaram oceanos como quem atravessa a rua. Afinal de contas, estamos falando do final do século 19 e começo do 20, período em que o turismo como conhecemos nasceu e cresceu — uma época em que poucas experiências eram mais inspiradoras do que cair na estrada.
Como esses viajantes eram escritores e escritoras, as suas aventuras foram parar em colunas de viagem em jornais, fazendo imediato sucesso de público. Quando Nísia Floresta lançou seu Três anos na Itália seguidos de uma viagem à Grécia, o bruxo de Cosme Velho disse que aquela viagem era o “sonho de qualquer poeta”. Então por que nosso maior escritor não transformava em realidade as viagens dos sonhos dele?
Para acrescentar mais um complicador nessa indagação basta lembrar que até a esposa de Machado, Carolina, era também uma viajante. Nascida em Porto, Portugal, ela embarcou num navio e se mudou para o Rio de Janeiro pouco antes de completar 20 anos.
Se viajar é um privilégio hoje, era ainda mais no século retrasado, o que ajuda a explicar essa questão. Muitos dos viajantes citados eram de classes sociais mais altas e não precisavam se preocupar em como financiar as viagens: caso de José Coelho da Gama e Abreu, por exemplo, que era político e parte da nobreza. Já Machado de Assis era filho de um pintor de paredes e uma lavadeira e neto de escravizados alforriados.
Perdeu a mãe quando ainda era criança e teve uma infância pobre. Cavou seu lugar na sociedade com muito esforço e, claro, talento de sobra, mas é natural pensar que dinheiro tenha sido um problema em seus primeiros anos. Mas e quando Machado de Assis já estava com a carreira feita? Há quem diga que ele tinha medo de viajar, uma consequência de seus problemas de saúde. É que o escritor tinha epilepsia, como bem lembra Cecília Costa em Viagens Imaginárias de Machado de Assis. As primeiras manifestações da doença vieram na infância, desapareceram na juventude e se tornaram constantes com Machado já adulto e casado.
Arnaldo Niskier explica que o medo da epilepsia se convertia em pavor de tempestades. Talvez por isso Machado de Assis evitasse os longos deslocamentos transatlânticos com suas tempestades de alto mar.
Inclusive, a saúde frágil marcou as poucas aventuras de Machado de Assis fora do Rio. Foi por questões médicas que ele passou temporadas em Nova Friburgo, usadas pelo escritor para descansar. Já a aventura mineira ficou longe de incluir as cidades históricas: Machado conheceu apenas Barbacena e Juiz de Fora, além de fazendas e vilas pelo caminho. É o que conta Arnaldo Niskier:
“Em janeiro de 1890, por estrada de ferro, e na companhia de alguns amigos, Machado visitou fazendas e centros pastoris. Foi recebido com relâmpagos e coriscos que o fizeram descer correndo a ladeira em que se encontrava. Tinha horror a tempestades, que mexiam com o seu sistema nervoso. Como as descargas elétricas continuaram à noite, Machado e Carolina permaneceram no quarto do hotel, cobrindo os ouvidos diante de estampidos apavorantes.”
O medo das tempestades foi registrado nas obras de Machado de Assis. Em Memórias Póstumas, a personagem Virgília “Tinha medo às trovoadas; nessas ocasiões, tapava os ouvidos, e resmoneava todas as orações do catecismo”. Já em Quincas Borba há o relato de uma grande tempestade quando o personagem Rubião está, vejam só, em Minas Gerais: “Súbito, relampejou; as nuvens amontoavam-se às pressas. Relampejou mais forte, e estalou um trovão. Começou a chuviscar grosso. Mais grosso, até que desabou a tempestade”.
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As Viagens Sedentárias de Machado de Assis
Machado de Assis quase não viajou, mas muito escreveu sobre viagens. Os três contos que formam a coletânea do Grandes Viajantes são a prova disso. Como você já deve imaginar pelos parágrafos anteriores, não são relatos descritivos de viagens ou contos e crônicas baseadas na experiência pessoal do autor por outras terras. São o que Machado chamou de “viagens sedentárias”: “Das viagens sedentárias só conheço duas capazes de recriar. A Viagem à Roda do Meu Quarto, e a Viagem à Roda do Meu Jardim, de Maistre e Alphonse Karr”, escreveu o autor.
Xavier de Maistre, autor de Viagem ao redor do meu quarto, foi uma das maiores influências de Machado de Assis. O livro de Maistre é uma paródia das grandes aventuras que seus contemporâneos descreviam e mostra como a imaginação pode viajar mesmo quando estamos trancados num quarto. A coletânea do Grandes Viajantes abre com Uma Excursão Milagrosa, publicado em 1866 na coluna Viagens do Jornal das Famílias — um espaço acostumado a receber relatos de viagens mais, digamos, reais.
Esse texto é uma nova versão de O País das Quimeras, um conto fantástico que tinha sido publicado em 1862. Aí a temática de viagem é clara: se trata de uma aventura fantástica para outro planeta, a terra das quimeras. Acompanhamos Tito, o personagem principal, ser arrancado da Terra e levado para o espaço. “Passados alguns segundos, abri os olhos e vi que caía perpendicularmente sobre um ponto negro que me parecia do tamanho de um ovo”, narra Tito, ao voltar para nosso planeta. Ainda faltavam mais de 100 anos para que o russo Yuri Gagarin contasse à Terra que ela é azul, o que explica por que Machado imaginou um “ponto negro”.
Já o conto O Programa foi publicado pela Revista A Estação em dezembro de 1882. Nele, o protagonista Romualdo faz um planejamento detalhado de toda sua vida: casamento, carreira, ascensão social, estudos, entrada na política e viagens — tudo teria um lugar exato em seu planejamento de vida. Nesse sentido, o tal programa seria quase um itinerário de viagem, como deixa claro esse trecho:
“Como é possível atravessar a vida, uma longa vida, sem programa? Viaja-se mal sem itinerário; o imprevisto tem coisas boas que não compensam as más; o itinerário, reduzindo as vantagens do casual e do desconhecido, diminuiu os seus inconvenientes, que são em maior número e insuportáveis.”
Viagem à roda de mim mesmo, o conto que encerra a coletânea do Grandes Viajantes, é inspirado no texto de Maistre. Foi publicado no jornal Gazeta de Notícias, em outubro de 1885. É a história de um homem que recorda uma tentativa de envolvimento amoroso e casamento, décadas antes.
“A viagem do título diz respeito, assim, às especulações que o narrador faz entre seu desejo (plano da imaginação) e a ação distante deste (plano da realidade) a partir de uma série de digressões enviesadas e apenas na aparência sem função narrativa”, explica Cilene Margarete Pereira num artigo sobre as viagens sedentárias de Machado de Assis.
Mesmo tendo feito as malas pouquíssimas vezes, Machado de Assis nos mostrou que a literatura é sempre uma viagem. Seja pelo próprio quarto, pelo nosso interior, pelas voltas que a vida dá ou pelo espaço sideral.
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