Em casas feitas de palha, enfileiradas numa vila muito pequena, mulheres sorridentes, algumas jovens, outras velhas, exibem peças de artesanato ou trabalham em máquinas de tear. Mas aqueles que visitam a vila não estão tão interessados em comprar. Todos vão ali para ver de perto as míticas mulheres-girafa.
Eu sempre tive curiosidade em conhecer essas mulheres, desde que as vi numa reportagem da Marie Claire, quando eu era criança. Acredito que todo mundo, algum dia nessa vida, já se deparou com uma foto delas, com aquelas argolas douradas no pescoço. Mas poucos procuram saber como elas vivem, por qual motivo estão ali e o que as faz manter a tradição.
Neste texto, você descobrirá mais sobre a história dessas mulheres com argolas no pescoço, sua realidade como refugiadas do Myammar e atração turística comum da Tailândia. Ainda, contamos como é possível visitar essa tribo de uma forma mais ética.
Por que as mulheres-girafa usam argolas no pescoço? Qual o significado?
Essas mulheres são refugiadas do Myanmar, da etnia Karen, e de uma tribo chamada Kayan (que também pode ser chamada de Padaung).
Nessa tribo, a tradição de tentar alongar os pescoços é secular. Não se sabe ao certo o significado: entre as diversas teorias formuladas por antropólogos, há aquelas que afirmam que seria para proteger dos ataques de tigres, impedi-las de se tornarem escravas ou até torná-las mais parecidas com um dragão, importante figura para o folclore local.
O que se sabe com certeza é que as argolas são parte da identidade cultural da tribo e, hoje em dia, são associadas à beleza das mulheres.
Como as argolas são colocadas?
As meninas da tribo Kayan começam a usar as argolas no pescoço a partir dos cinco anos. É uma peça única de bronze, com aros enrolados, que com o tempo é substituída por peças cada vez maiores, com no máximo 25 aros. As peças são extremamente pesadas e podem chegar a até 10 quilos.
A curiosidade é que o pescoço não se alonga com o processo – é só ilusão de ótica. O que acontece é que os aros afinam a região e o peso da peça comprime a clavícula para baixo, afundando a caixa torácica, o que dá a impressão de que o pescoço cresceu.
As mulheres Kayan podem tirar as argolas, só precisam tomar cuidado para não virar o pescoço bruscamente.
Qual a história das mulheres-girafa na Tailândia?
Se antigamente usar as argolas era tradição, hoje virou uma questão de sobrevivência econômica. Desde o final dos anos 1980, membros da etnia Karen fogem do Myanmar, onde existiu um conflito étnico, para o nordeste da Tailândia. Dentro dessa etnia, está a tribo dos Kayan, da qual as mulheres com argola no pescoço fazem parte.
Contexto do conflito em Myanmar
Conhecido até 1989 como Birmânia, o Myanmar é um país jovem e marcado por sérios conflitos. Até 1948, era uma colônia do Reino Unido. Com a independência, as minorias do país – como o povo Karen, de origem tibetana-birmana – se rebelaram contra o novo governo e estabeleceram estados autônomos não-oficiais.
Em meados de 1970, a ditadura militar que governava o país fez grandes operações contra essas regiões. As tribos Karen, entre elas a kayan, foram forçadas para fora dos seus territórios, em direção à fronteira com a Tailândia. Em 1984, o exército da Birmânia lançou um grande ataque contra esse povo. Para sobreviver, cerca de 10 mil membros do povo Karen foram obrigados a fugir para a Tailândia, onde se estabeleceram como refugiados.
Nos anos seguintes, as forças ofensivas iam aumentando, o que fez com que mais e mais refugiados fossem para o país vizinho. Um dos episódios mais marcantes foram as manifestações populares de 1988, quando milhares de pessoas, incluindo estudantes e ativistas, foram duramente reprimidos. Mesmo com as diversas mudanças no governo e até de nome do país, a situação ainda era crítica. Em 1994, os campos de refugiados birmaneses na Tailândia já chegavam a uma população de 80 mil pessoas.
Na década seguinte o conflito seguiu violento, com vilas destruídas e centenas de milhares de pessoas ficando sem casa. O número de refugiados em campos chegou a 150 mil, e iniciou-se um programa para realocar parte dessas pessoas para outros países.
Foi apenas na última década que essa história começou a mostrar mudanças positivas. Em 2011, foi eleito um governo civil que começou negociações de paz e a reabertura do país. O conflito com a etnia Karen só chegou ao fim em 2015 e, desde então, o país abriu as portas para receber os refugiados que quisessem retornar.
A fonte dessa história é a ONG The Border Consortium (TBC), que atua nessa região há mais de três décadas.
Vale lembrar que, apesar da resolução do conflito Karen, outras etnias e grupos religiosos, de outras partes do Myanmar, seguem em confronto com o governo do país, com casos gravíssimos de atentados a direitos humanos e acusações de genocídio.
A questão dos refugiados na Tailândia
Cerca de 90 mil refugiados birmaneses ainda permanecem na Tailândia, e a maior parte deles pertence à etnia Karen. Desses, há cerca de 600 pessoas do povo Kayan, ou seja, as mulheres-girafa e suas famílias, divididas em três vilas abertas para visitação. E também um campo de refugiados, que é fechado para turistas.
É preciso entender que a Tailândia não segue os protocolos da ONU para refugiados. Na prática, os refugiados na Tailândia não conseguem obter o status de residentes, nem seus filhos que nascem no país. Eles são proibidos de sair das áreas demarcadas pelo governo sem uma permissão expressa e têm pouco ou nenhum acesso a oportunidades de trabalho e escola fora de suas vilas.
Segundo Duncan McArthur, diretor da TBC, “estima-se que existem três milhões de trabalhadores migrantes do Myammar na Tailândia. Desses, apenas metade possui permissões de trabalho por meio de processos formais de imigração. Trabalhadores registrados têm o direito de trabalho, mas seus movimentos são restritos à província designada, a não ser que sejam autorizados. Trabalhadores sem documentação e refugiados que vivem fora dos campos são oficialmente considerados imigrantes ilegais e são sujeitos a deportação”.
No caso das mulheres Kayan, a situação é pior. Elas se tornaram uma boa fonte de renda para quem explora o turismo, e não seriam tão curiosas e exóticas se pudessem ser vistas andando pela rua. Em 2008, uma reportagem da BBC revelou que, caso decidam tirar as argolas, elas param de receber ajuda de custo do governo. E, ainda, elas têm mais dificuldade do que as outras tribos na realocação para outros países como refugiadas.
Apesar da reportagem ter facilitado um pouco os pedidos de refúgio das mulheres-girafa para outros países, como Nova Zelândia ou Finlândia, aquelas que ficam na Tailândia seguem com o status de cidadãs de segunda classe, sem condições de voltar ao país de origem, onde não têm mais nada, e presas a uma vida que o governo tailandês às obriga.
O turismo e as mulheres-girafa: questões importantes
Em 2012, nós contratamos, em Chiang Mai, um passeio até a vila onde ficam as mulheres Kayan, num pacote duvidoso que incluía também safári de elefante e rafting de bambu. Na época, informações a respeito desse passeio eram escassas e as reflexões éticas sobre eles, ainda mais. No mesmo dia, vimos dezenas de turistas participando do passeio.
Confesso que não sabíamos de nada dessa história quando escrevi a primeira versão deste texto e, menos ainda, quando fizemos o passeio, que, junto com o passeio de elefantes, está entre as atividades turísticas mais problemáticas e questionáveis no país.
Por um lado, além da ajuda humanitária, o turismo e a venda de artesanato é a única fonte de renda da tribo Kayan. Por outro, elas são o retrato de uma exploração abusiva e do desrespeito aos direitos humanos. Vivem presas num zoológico humano e têm poucas chances de sair dali.
Veja também: Nem todo turismo vale a pena
O documentário de Marko Randelovic, para o Matador Network, expressa muito bem a dicotomia em que elas vivem. Apesar de todas as questões humanitárias, querem e precisam receber turistas para sobreviver.
“
Uma reportagem de 2017, do PRI The World, também aponta essa questão, particularmente expressa na história de Ma Ja, que vive com duas filhas e o marido numa vila e busca uma permissão de trabalho temporário na cidade de Pattaya. Ela ressalta a importância dos turistas em sua vida, mas queria algo mais:
“Eu não tive escolha; se eu tivesse tido acesso à educação, estaria fazendo algo diferente… não apenas ter a minha foto tirada. Eu sinto que a vida tem mais a oferecer, não apenas isso”. Ma Ja, refugiada da tribo Kayan na Tailândia, para o PRI The World
A pandemia do coronavírus e seu impacto no turismo trouxe ainda mais desafios. Um relatório da TBC, de abril de 2020, revela que os cerca de 90 mil refugiados agora estão mais marginalizados. “As restrições para movimentação dentro e fora dos campos erodiram ainda mais as oportunidades limitadas dos refugiados para a renda informal, tornando-os dependentes apenas de ajuda humanitária para suas necessidades básicas”.
Como visitar as mulheres-girafa na Tailândia de uma forma ética?
Por tudo isso, entender se é possível conhecer as mulheres-girafa e contribuir com a sobrevivência econômica da tribo Kayan de forma ética é algo bastante relevante.
É importante lembrar que, ao fazer essa visita, na prática você está visitando uma vila de pessoas refugiadas com direitos humanos limitados. Sem dúvida, a melhor forma de fazer isso é tentar garantir que toda ou boa parte dos seus gastos com esse passeio seja revertido para aquelas mulheres, não para agentes de turismo que as exploram.
A melhor forma é você ir a uma das vilas por conta própria. Uma opção viável é Baan Tong Luang, a 30 minutos de Chiang Mai. Nessa vila, você paga um valor de entrada que é revertido para a própria comunidade. Você ajuda ainda mais comprando o artesanato que é feito pelas mulheres e homens kayan.
Como estrangeiros são proibidos de dirigir na Tailândia, você precisaria apenas contratar um motorista para o trajeto e combinar o tempo de estadia. Dá para fazer isso pedindo indicação no seu hotel, em Chiang Mai, ou negociando diretamente com os taxistas.
Outra opção é contratar uma agência que atue com responsabilidade social. Eu busquei bastante e encontrei a Thailand Hilltribe Holidays, uma agência de turismo/empresa social com sede em Chiang Mai. Um dos donos é morador local e os guias são todos nativos das tribos das montanhas.
Com essa agência você consegue fazer o passeio de forma mais responsável: eles levam à vila de Baan Huay Pu Keng (perto da fronteira), que só é acessível de barco. Quem guia a visita é habitante da vila, de forma que mais do que tirar fotos, você pode conversar e aprender sobre a vida, cultura e a realidade das tribos das montanhas do país.
Além disso, eles oferecem passeios mais completos, como a oportunidade de passar uma noite numa casa da tribo ou de fazer um tour por diferentes tribos das montanhas, incluindo as Kayan.
Você pode entrar em contato com a Hilltribe Hollidays pelo site, WhatsApp: +66 85 548 0884 ou email: info@thailandhilltribeholidays.com
Para completar, uma vez que esses passeios estão conectados, desaconselhamos fortemente programas turísticos com animais que causem sofrimento a eles. Evite safáris de elefante e, caso decida visitar um santuário de animais resgatados, certifique-se de que o trabalho realizado por eles é ético.
Existem muitos outros passeios para na Tailândia! Você pode descobrir todos aqui.A informação é chave para evitar se envolver com atrações turísticas que na verdade são cruéis. Se você quer saber mais sobre o tema, leia nosso Manifesto.
Incrível matéria em sabermos a verdadeira realidade dessas mulheres, sempre tive a curiosidade de conhecê-las, contudo o que descreveu me sentiria mal em alimentar isso.
No entanto, fiquei curiosa em como conseguir ter casa em 4 países? A profissão ajudou? Faz uma matéria com esse informativo. Sou louca pra sair do Brasil e vejo muitos brasileiros conseguindo residência em Portugal.
Obrigada!
Oi Dayane,
Temos muitas matérias sobre isso!
Especificamente em Portugal, você pode ver aqui: https://www.360meridianos.com/tag/morar-em-portugal
Olá Luiza, tudo bem!?
De uma página que está me servindo de base, vim parar aqui! hehe
Bom, estou com viagem marcada para a Tailândia e meu roteiro inclui um passeio pelas “mulheres-girafas” e pelo Elephant Nature Park.
Confesso que pesquisei um bocado acerca dos zoológicos e seus tratamentos com os animais, como tbm sobre estas aldeias e, pelo fato de “Por um lado, atualmente é o turismo e a venda de artesanato que sustenta as belas mulheres Kayan”, eu vou com a consciência menos pesada.
A escolha de bons operadores turísticos, mais sensíveis, são importantes.
Ótima página!
Abraços!
Oi Wagner,
Olha, logo em seguida dessa frase eu explico como esse “sustento” delas não justifica o que acontece. Continuamos desaconselhando esse passeio.