Mariana terminava um bordado no quintal de sua casa em Juchitán de Zaragosa quando eu a conheci. O tecido que ela preenchia com as flores coloridas que são características do artesanato do estado de Oaxaca se tornaria um huipil, um traje feminino típico daquela região. É com a renda gerada por trabalhos do tipo que ela ganha a vida. Ela usava um confortável vestido de algodão com estampa de oncinha e os longos cabelos negros caiam sobre o rosto maquiado. “Você sempre se veste?”, perguntei. Ela confirma com a cabeça: “Comecei aos 11 anos e nunca mais parei. Já nem tenho roupas masculinas, todo o meu armário é de mulher”.
Desde pequenas, as irmãs Mariana e Coral Aquino sentiam que eram diferentes dos meninos de sua idade. Preferiam passar o tempo com meninas e sempre encontravam um jeito de usar escondido a roupa de suas outras irmãs. Nas brincadeiras, Coral era bailarina e Mariana a ajudava a se arrumar. A mãe foi a primeira a se dar conta de que as filhas eram muxes (mu-she), pessoas que possuem uma identidade de gênero exclusiva das comunidades do istmo de Tehuantepec, no sudoeste do México, e do povo zapoteco que historicamente habita a região.
Mariana e Coral no quintal de casa
De acordo com a lenda, os primeiros zapotecas que povoaram a região onde foi fundada a cidade de Oaxaca excluíram de seu convívio os homens que apresentavam características afeminadas e os enviaram para uma cidade alternativa fundada no istmo de Tehuantepec. Com a chegada dos colonizadores espanhóis, no século 15, essas pessoas passaram a ser chamadas de muxes, uma zapotequização da palavra mujer.
Embora muitas vezes confundidos com transexuais, os muxes não se identificam nem como homem, nem como mulher. Possuem características próprias e formam um grupo social sui generis e, por isso, são muitas vezes descritos como um terceiro gênero. “Posso ter adotado um nome e roupas femininas, mas nunca serei uma mulher. Sou muxe e estou feliz de ser quem sou”, explica Mariana.
Um muxe é toda pessoa do sexo masculino que escapa ao heteronormativo. É um grupo diverso que inclui desde homens homossexuais que mantém sua identidade masculina (muxes nguiiu), podendo ou não se vestir com trajes femininos apenas em festas e ocasiões especiais, até aqueles que preferem vestir-se e viver sua vida como mulher, adotando inclusive um nome feminino e desempenhando papéis que são socialmente reservados às mulheres na sociedade do istmo de Tehuantepec, como o comércio e o artesanato (muxes gunaa). “Muitas vezes é vendida essa ideia de que os muxes são apenas aqueles que se vestem, mas isso não corresponde à realidade. Nem todos se identificam da mesma forma”, explica Elvis Guerra, muxe de 24 anos que preserva seu nome e identidade masculina.
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7 culturas com identidade de gênero não-binárias
Elvis conta que na língua zapoteca não existe distinção de gênero. Por isso, tentar enquadrar os muxes em masculino ou feminino não faz sentido na cultura do istmo. A necessidade de defini-los na perspectiva da dualidade de gênero vem do espanhol, porque é uma língua em que todas as coisas ou são masculinas ou femininas, o que torna difícil para os falantes do idioma expressarem ou compreenderem conceitos que fogem ao binarismo. “Mas nós não somos ‘as muxes’ ou ‘os muxes’. Somos muxes apenas”, afirma.
Tradicionalmente, são eles quem assumem o papel de cuidar dos pais na velhice. Por isso, muita gente acredita que ter um muxe na família é uma benção. A sociedade juchiteca, no entanto, está longe de ser um paraíso inclusivo. Embora o gênero seja reconhecido na cultura do istmo, a experiência homofóbica e a marginalização são aspectos marcantes na história de cada um dos muxes com quem conversei. “Existe muita discriminação. Ser quem somos nessa sociedade é muito difícil. Juchitán é uma cidade pequena e as pessoas ainda se espantam e te discriminam verbalmente”, conta Mariana. As “muxes vestidas”, ou gunaa, não têm o direito de usar os banheiros femininos e encontram grande dificuldade para se inserir no mercado formal e em profissões de maior status social e, por isso, acabam se dedicando à costura e ao artesanato, por exemplo. “Tem gente também que finge que não nos conhece na rua ou que só nos vê como palhaços, como diversão em festas”, acrescenta.
Até mesmo o papel de cuidadoras da família só lhes é concedido porque a elas é vetado o direito de constituir sua própria família. No passado, era comum que os homens tivessem suas primeiras experiências com muxes. Era uma forma de iniciar a vida sexual sem comprometer a virgindade das mulheres. Hoje, isso já não acontece com tanta frequência, mas muitos homens heterossexuais continuam buscando os muxes para relações casuais e até mesmo extraconjugais. “Os homens sempre vão se casar com uma mulher e procurar muxes às escondidas. É muito raro que um homem assuma uma relação com uma muxe”, completa Coral.
Formado em direito, Elvis frequenta oficinas e rodas de literatura e escreve poesia homoerótica zapoteca. Ele conta que, no futuro, pretende se tornar o primeiro prefeito muxe de Juchitán de Zaragoza e, assim, conseguir criar políticas públicas específicas para atender demandas da população muxe e criar mais oportunidades para ela: “Nós muxes não temos porque nos limitar ao ambiente doméstico, ao artesanato. Podemos ocupar cargos de poder, ser o que quisermos”.
Ainda há um longo caminho a ser percorrido. O preconceito nem sempre sutil que permeia a vida de muxes é evidente no vocabulário utilizado para referir-se às pessoas que se identificam com o gênero. Na língua zapoteca, o adjetivo muxe se relaciona à covardia, ao medo, aos carentes de valentia. É uma das formas mais fortes de insultar a um homem naquele idioma. “É em sua raiz um termo machista e homofóbico, uma forma de dizer que perdemos valor ao nos aproximarmos do feminino”.
No entanto, ele afirma que há por parte dos muxes um movimento de reapropriação do termo para dar a ele um significado positivo: “Não nos ofendemos. Ao contrário, dizemos que somos muxes sim, e com orgulho, que isso não nos faz menores que ninguém”. Coral concorda com ele: “Não me arrependo de nada. Se eu pudesse nascer de novo e escolher, voltaria a nascer muxe para ter outra vez todos os namorados que tive”, acrescenta.
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Ótimo texto, Natália! Sou outro que não conhecia os/as muxes. Eu não sei o nome nem o lugar, mas há um povo na Oceania em que é considerado muita sorte ter na família uma pessoa homossexual ou que não se identifica com o gênero de nascimento. Estas se pessoas se tornam a matriarca e são quem criam as crianças e cuidam dos idosos. Um status de grande respeito.
Tomara que elxs saiam cada vez mais da marginalidade e ganhem mais respeito.
Alexandre, que interessante! Parece um pouco com o papel dos muxes na sociedade do Istmo. Vamos torcer para que as minorias sejam cada vez mais respeitadas 🙂
Abraços
Obrigadaa por esse conteúdo!! Expor as possibilidades q cada corpa pode atingir quando se entende fora dos códigos cis e binários nos ajuda a respeitar e cuidar de mais vidas
Olá Gabriel!
Obrigada pelo comentário, fico feliz que você tenha gostado! Foi uma experiência incrível acompanhar essas pessoas por um dia.
Abraços!
Ótimo texto
Não conhecia as vivências das muches. Aprendi e me emocionei lendo
Novamente, obrigado por publicarem textos (não esteriotipados) com representatividade LGBT
Eu entendo que todos temos o direito a escolhas, mas como eu sou Cristã e creio nas Palavras e Mandamentos de Deus, meu Criador, não concordo em ideologia de gênero, ou seja a pessoa que nasceu com sexo feminino é mulher, a pessoa que nasceu com sexo masculino é homem. Fora isso é invenção humana e não vem de Deus.
Adorei o texto, Natália. Não sabia da existência de muxes, acho que muitas vezes os movimentos sociais brasileiros acabam por desclassificar e deixar de lado aquelas pessoas que não se encaixam no binarismo, isolando até mesmo a existência daqueles que estão longe dos nossos olhares. Renderia um bom documentário, ein?
Oi Adriele, na verdade já existem diversos documentários e mini documentários sobre o tema no youtube. Se você se interessa pelo assunto, vale a busca. Obrigada por comentar! 🙂
Abraços