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Atlas: Havana, Cuba

Santeria: os mistérios da religião afro em Cuba

Você já ouviu falar na Santeria Cubana? Mas é muito provável que você esteja familiarizado com esses nomes: Yemanjá, Oxum, Oyá.

É que longe dos terreiros do Candomblé e da Umbanda, essas mesmas entidades são pilares da fé de milhares de cubanos que mantém vivos os ensinamentos, ritos e mistérios de uma tradição milenar levada à ilha por cerca de um milhão de africanos que chegaram ali escravizados entre os séculos 16 e 19.

O que é a Santeria Cubana

Conhecida como Santeria, ou religião afro-cubana, as práticas que eu tive a oportunidade de ver de perto durante meu tempo em Havana de fato lembram em muito as que conhecemos no Brasil, mas por ali ganham um tempero todo caribenho.

Assim como outros aspectos da cultura negra em Cuba, a Santeria faz parte do dia a dia dos habitantes da ilha e é indissociável da identidade cultural do país.

“Uma vez eu sonhei que estava parado em um deserto. Ventava muito. De repente, aparece um homem alto como eu, que tem a cara coberta. Parecia um árabe. Durante minha cerimônia de iniciação na religião, uma pessoa se aproximou e me disse que eu tinha um espírito que me protegia, e essa pessoa descreveu exatamente o homem que eu vi no meu sonho”, quem conta essa história é Frank, guia à frente do projeto Beyond Roots, que promove a cultura negra na ilha e é praticante da Santeria desde os 15 anos.

Foi ele que me acompanhou até um ilê, ou uma Casa de Santo, no bairro de Guanabacoa, a cerca de 30 minutos de Centro Havana. Aos poucos, os casarões históricos vão dando lugar a casas de origem mais humilde que datam de uma época pré-revolução. Embora não tenha o mesmo charme colonial, o bairro é rico em história e cultura e é considerado a Meca das religiões de matriz africana na ilha.

mulher dançando em terreiro de santeria, em Cuba
Mulher dança em homenagem e Iemanjá em Casa de Santo, em Havana

Ao chegar, somos conduzidos a um quintal cheio de plantas, algumas cadeiras dispostas em círculo, galinhas e um poço com algumas tartarugas. “São animais de estimação comuns em Cuba. Acreditamos que elas tiram as energias ruins da casa ao caminhar por elas e depois às liberam na água”, conta Frank.

Além das tartarugas, o quintal também estava repleto de esculturas e recipientes de barro. “São imagens dos espíritos protetores da casa, membros da família do Santeiro que já morreram. Aqui é o lugar onde eles acendem uma vela para prestar homenagem aos seus antepassados”, explicou ele.

Também ali, uma árvore enorme, adornada com um imenso cacho de bananas maduras — uma oferenda — toma conta de boa parte do espaço. Ela foi plantada ali para representar todos os antepassados das pessoas da casa. Na África, a árvore utilizada seria o baobá, porém como essa espécie não é encontrada em Cuba, as pessoas acabaram substituindo-a por outras plantas nativas. Ali, a árvore também representa a fundação de Havana e a fundação da religião afro-cubana na ilha.

A tradição é dar três voltas na árvore e pedir por bençãos. Em Cuba, os maiores pedidos são por saúde e dinheiro: “A maior parte dos Cubanos que pratica alguma religião são católicos, mas mesmo eles costumam pedir bençãos a essas árvores. Aqui em Cuba impera o pensamento de que ‘não acredito, mas vai que funciona’”, comenta Frank.

A similaridade da Santeria com as religiões afro-brasileiras pode ser explicada pela origem em comum das pessoas que foram escravizadas em toda a América Latina. A maior parte delas pertencia ao grupo étnico Iorubá, um dos maiores da África Ocidental. Forem eles que trouxeram consigo seus deuses, ritos e crenças.

Praticantes da Santeria em Cuba
Frank e seu Pai de Santo na Casa onde ele realiza os passeios para divulgar a cultura afro-cubana.

Quer fazer um tour de Santeria em Havana você também? Clique aqui e confira!

Como é a pratica da Santeria em Cuba

Assim como ocorreu no Brasil, para sobreviverem à perseguição dos colonizadores europeus, os praticantes precisaram adaptar sua fé, criando associações com santos católicos e incorporando formas sincréticas de adoração.

A Igreja Católica da Virgem de Regla, por exemplo, localizada de frente para o mar na Baía de Havana, é o local para onde as pessoas se dirigem vestidas de azul todo dia 7 de setembro, dia de Iemanjá na tradição da ilha.

Igreja Nossa Senhora de Regla, Iemanjá, Havana
Igreja da Virgem de Regla cheia de fiéis no dia de Iemanjá

Essa adaptabilidade e essa resiliência, associadas à sua organização descentralizada, possibilitaram ainda que a Santeria fosse uma das poucas práticas religiosas que resistiram a décadas de proibições e estigma pelo governo comunista.

Embora não haja dados oficiais sobre o número de praticantes, estima-se que seja a segunda maior religião da ilha, contando mais adeptos até mesmo que outras religiões cristãs, como as Igrejas Evangélicas.

Além disso, embora muitos não se considerem praticantes, entre 70% e 80% da população incorporou alguma prática afro-religiosa em seu dia a dia. “Por exemplo, o girassol é Oxum. Sempre que você ver um girassol em Cuba, pode saber que é pra prestar respeito a ela”.

Tanta adesão faz com que seus ritos e práticas sejam extremamente respeitados por ali. Em geral, a população está familiarizada com as oferendas, vestimentas e palavras utilizadas nos ritos e as tratam com respeito esperado à fé de alguém.

Frank conta, por exemplo, que todos os iniciados na religião precisam passar um ano usando roupas brancas e a cabeça coberta. Além disso, abdicam de seu nome de batismo e passam a ser chamados de Iabô durante o período. Como trabalhava como advogado naquela época, ele teve permissão para usar terno, mas precisou usar os colares de contas tradicionais e cobrir a cabeça.

praticante da santeria em Havana

“Um dos juízes me viu e percebeu que eu estava passando por isso e, durante um audiência, em vez de me chamar pelo nome que constava no meu documento, ele passou a se referir a mim como Iabô. Ele não era praticante, mas respeitou minha fé naquele momento”, lembra.

A Santeria é apenas uma das três religiões afro-cubanas, e talvez a mais difundida. Além dela, há ainda a Palo Monte e a Abakuá, e nada impede que uma pessoa pratique duas ou as três ao mesmo tempo.

Os Abakuá possuem um templo, um local de reunião, mas Palo Monte e Santeria são praticadas dentro das casas das pessoas.

Tampouco há uma sistematização escrita dos ritos e dogmas. Todo o conhecimento é passado de forma oral, de geração para geração. “É sabedoria popular”, explica Frank. “Por isso eu acho que a religião tem crescido tanto em Cuba nos últimos anos. Essa liberdade. Também não nos importamos com a sexualidade das pessoas. Desde que você respeite seus ancestrais, você pode ser quem você quiser”, diz.

Após o colapso da União Soviética, a perseguição do governo cubano às religiões arrefeceu e a Santeria é hoje considerada uma das válvulas de escape para as múltiplas crises religiosas, políticas e migratórias enfrentadas pelo país desde então. Um lugar de apoio, consolo, solidariedade e esperança para os cubanos.

Para ver como é a casa do Santeiro e algumas das práticas religiosas da Santeria, assista o vídeo abaixo:

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones e no Youtube. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

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